domingo, 26 de fevereiro de 2012

Será mesmo saudade?

         Certa vez um bom amigo escreveu que a saudade é um sentimento que atinge àqueles que se percebem perdendo pedaços queridos de seu ser; que vêm seus territórios existenciais e afetivos se esboroarem e serem tragados pelo tempo. A estes significados acrescento outros. Saudade, sentimento danado que deixa o coração apertado, angustiado, melancólico pela falta de. Falta de algo, de alguém, de alguma coisa. Mas não de qualquer coisa, de qualquer algo ou de um simples alguém. Mas das coisas que marcam  nosso corpo como cicatrizes, de algo que nos toca a alma e adensa o peito e o espírito, de alguém com quem compartilhamos experiências marcantes, em relação a quem nutrimos os maiores desejos e os melhores sentimentos.
        Saudade, sentimento arretado de quem se quer sempre colado, agarrado no outro. Saudade, sentimento egoísta de quem não quer perder, de quem não quer dividir, compartilhar, de quem quer apenas perto de sí; sentimento de quem não quer se distanciar mesmo sabendo que a perda, o distanciamento, o compartilhamento, a partida, a ida sem volta é para o bem próprio ou do outro. 
        Saudade, sentimento safado de quem quer dizer sempre: não vá, volte, fique aqui, pois não permito sua partida; vontade de dizer não quero mais, acabou a brincadeira. Saudade, sentimento dúbio que expressa um gostar descabido de querer estar perto, sempre perto mesmo quando se está distante. Um gostar que surge pela falta, pela distância, pela relutância em não se perder, brigando, lutando contra a falta e a distância, contra a possibilidade de perda, mesmo quando nada se perde e tudo se ganha. 
      Saudade, sentimento que se sente quando se tem laços de pertencimento, de reconhecimento, de identificação. Saudade de coisas que não voltam mais, de lugares que não são mais os mesmos, de tempos que agora são outros e que o tempo não tráz uma vez mais. Mas, sobretudo, saudade de pessoas. De pessoas marcantes, daquelas com as quais dividimos tanto nossos melhores quanto nossos piores dias e momentos, com as quais compartilhamos nossas melhores experiências, das mais intimas às mais públicas, com as quais experimentamos nossos desejos mais ardentes e reservados. 
         Saudade, sentimento bom, mas que quase ninguém quer sentir. Saudade que sinto sem querer, saudade que aperta o peito e contrai a alma, que angustia por estar longe, por se sentir perdendo ao mesmo tempo em que alegra-nos, por nos fazer humanos, demasiado humanos. Humanos no gostar do outro, no querer o outro como parte de sí. Que se alegra ao tê-lo de volta, ao vê-lo voltar e matar a saudade, para que ela possa reviver na próxima partida.

Ronaldinho Gaúcho: metáfora da Seleção e do futebol brasileiro.

        Acompanho futebol a cerca de 20 anos. Na maioria deles com um bom discernimento e certa criticidade em relação ao esporte bretão e ao que ele representa para nossa sociedade. E ao longo destes 20 anos Ronaldinho Gaúcho foi, talvez, o jogador mais talentoso, brilhante, genial que ví jogar, aquele que melhor expressou e simbolizou o futebol brasileiro, ontem e hoje. E olhe que ao longo destes 20 anos vi outros craques jogando e atuando: Um Romário (genial e mortal de fronte para o gol), Zidane (clássico, seco, elegante e objetivo), Rivaldo (Elegância e objetividade nas suas pernas tortas, sobretudo na canhota), Ronaldo (fenômeno de mídia, de marketing e de craque, o primeiro craque de estrelato mundial dos novos tempos do futebol, um divisor de águas no marketing futebolítico), Messi (Gênio e talento de mesmo potencial que o Gaúcho, sabe aproveitá-lo sem estrelismos e o está aproveitando até o seu limite, se é que há limite para tal talento). Mesmo diante destes nomes, Ronaldinho Gaúcho no seus auge, em especial no período em que ele esteve no Barcelona, de 2003 a 2006, antes da Copa do Mundo daquele ano, foi, para mim, o melhor e mais completo de todos eles, em todos os quesitos. Indiscutível, mágico. Um potencial sem limites ou com limites que ultrapassavam em muito o possível.
             Ronaldinho Gaúcho não era um craque, um gênio produzido apenas pelo marketing esportivo ou pela mídia como em grande medida se tornou o seu homônimo mais velho. Ele era um gênio sobretudo pelo que fazia dentro de campo, transformando o impossível em possível, o improvável em feito. Ao ponto de seus fãs acreditarem que de seus pés e pelos seus pés até mesmo o impensável se tornaria possível (como chutar a bola na trave quatro vezes seguidas, de quase do meio campo, sem que ela caísse e sempre retornando, milimétrica a seu pé) como um milagre, uma mágica. Como mágico era o seu futebol. Por essas e por outras, o Gaúcho naquele momento era maior e melhor do que Messi é hoje. O Gaúcho parecia torcer a realidade, a transformar com seus dribles, toques, passes, assistências, com os seus gols. Sobretudo, porque a genialidade do Gaúcho se fez em um Barcelona que não era tão genial e perfeito quanto o de hoje. Mas, em um Barcelona em que Ronaldinho lhe dava a perfeição sendo, muitas vezes, mais de 50 % do time, de um time que embora não se equipare com o de hoje, não deixava muito a desejar a este.
              Foi neste Barcelona que Ronaldinho Gaúcho se transformou no melhor jogador que vi em campo. Um gênio, um mágico, um artista da bola, com um potencial a desenvolver que não sabíamos o seu limite e, certamente, nunca mais saberemos. Simplesmente porque ele parou. Mesmo continuando a jogar, ele parou. Como numa mágica o artista sumiu e não voltou mais, nunca mais foi como antes. Declinou, tanto como atleta quanto como artista. Um artista, que a despeito de muitos, parece ter acreditado, muito cedo, já ter construído a sua obra prima e dali por diante não querer mais construir algo tão brilhante, tão reluzente, tão perfeito, tão mágico. O Ronaldinho gênio foi meteórico.
          Depois de 2006, Ronaldinho parou. Passou a viver  tão somente do nome e dos seus dividendos simbólicos e aconômicos. Deixou de ser um jogador gênial para viver apenas do nome e da mágica gerada, de fora, em torno dele. Tornou-se, de uma hora para outra, um jogador comum, burocrático, preguiçoso, com raríssimos lampejos de genialidade, de futebol arte. Tornou-se uma estrela lunar, que o brilho não emana mais de sí mesmo, mas das projeções de glamour e estrelato que o marketing depositam no seu nome. Por isso, cada vez mais, ele expressa um brilho fosco, emprestado, forçado, inventado e conservado pela mídia e pelo marketing, alimentado pelos interesses financeiros em torno da marca R10. Abandonou o brilho próprio produzido dentro dos campos e gramados mundiais pelo brilho não tão glamouroso das noitadas, das baladas, dos flashs, das páginas de revista de fofoca. Fez da sua carreira, com a ajuda de seu irmão e empresário, Assis, um balcão de negócios. Burocratizou seu futebol e mercantilizou a sua carreira. Deixou de ser um artista para se transformar num mero operário, num mero empregado - bem remunerado - do futebol empresa.
           Mas, Ronaldinho não construiu essa trajetória sozinho ou a parte daquilo que se passa com o futebol brasileiro como um todo. Não. Sua trajetória em grande medida parece se cruzar com  a própria trajetória do futebol brasileiro e, em especial, da Seleção Brasileira nos últimos 10 ou 15 anos. Sua trajetória é em grande medida a metáfora mais bem acabada de nosso futebol. Explico. Por tudo que já fez e proporcionou nos campos, Ronaldinho Gaúcho é um dos símbolos maiores daquilo que se define como futebol arte, alegre, ousado, criativo, vencedor, mágico. É simbolo de reconhecimento, de sucesso derivado de tudo aquilo que fez dentro de campo. R10 é também uma grande marca do marketing esportivo e uma estrela midiática. É sinônimo de retorno financeiro, de geração de recursos e dividendos econômicos. O mesmo também se pode dizer da Seleção Brasileira e, por extensão, do futebol brasileiro. Símbolo de futebol arte, de magia, de ousadia, de futebol alegre e vencedor. Mas que também se transformou em marca, em produto de marketing e da mídia a serviço de interesses comerciais excusos, como os do Presidente da CBF e os da GLOBO. A Seleção Brasileira foi transformada pelo Sr. Ricardo Teixeira numa marca, numa indústria de fabricação e venda de jogadores, num grande balcão de negócios extremamente lucrativos para ele e seus apaniguados. 
            O Ronaldinho é o espelho individualizado da seleção e das práticas que a conduzem, e o Assis é o seu Teixeira. Neste processo tanto ele quanto a Seleção foram se burocratizando, tornando-se mercadoria vendável a qualquer alto preço, a serviço dos interesses de patrocinadores e empresários e quase nunca a serviço do bom futebol. Mercadorias vendidas muito mais pelo nome que construíram anos atrás do que pelo que vem desempenhando hodiernamente dentro de campo. Um nome e uma imagem que a cada nova atuação só faz se esboroar, a medida que não correspondem mais, sequer, a 10% daquilo que é prometido no momento da venda ou daquilo que um dia já foram, do que podem ou do potencial que têm ou tiveram. Vivem muito mais da badalação em torno de seus nomes e marcas e do que um dia representaram do que propriamente daquilo que vem demonstrando efetivamente dentro de campo. Só uma mídia sequiosa de ver seus interesses e conveniências corroborados é que ainda lhe fazem coro e promovem o aplauso, que cada vez mais soa falso e forçado.
            Tanto Ronaldinho quanto a Seleção deixaram de protagonizar como artistas da bola pelos campos do mundo, para se tornarem meros empregados do futebol, num tempo onde tudo é comercializável, até mesmo o prazer em jogar futebol. Ronaldinho e a Seleção não parecem jogar mais por prazer, por diversão, por e pela arte, para encantar o mundo, quando muito por resultados. Mas, parecem jogar muito mais por obrigação. Obrigação em cumprir um contrato, obrigação mercadológica de quem vendeu um espetáculo, mas que a cada dia se mostra mais impossibilitado de realizá-lo, sempre postergando-o para a próxima apresentação, a próxima partida numa tentativa vã de que numa próxima a alma, o prazer e o gozo estejam presentes na encenação, no campo. Mercantilizaram-se à medida que se burocratizam cada vez mais. Insosos, insípidos. Aplaudidos apenas por uma mídia - diga-se a GLOBO - conivente e beneficiária com e dos dividendos econômicos que os dois ainda representam e geram.
             Trágica coincidência. Nunca o futebol brasileiro lucrou tanto em termos econômicos, mas também nunca ele tinha sido tão feio, tão pobre, tão burocrático e medíocre. Hoje, somos muito mais o futebol de estrelas extra campo, midiatizadas, produzidas pelo marketing do que propriamente de artistas da bola, que se produzem e se inventam dentro de campo, como um dia foi o Gaúcho. Assim como ele o nosso futebol parou, está em claro declínio, vive um crepúsculo de artistas, de craques, de gênios, de desenhos táticos. Deixou minguar seu potencial para produzir magia, sonhos, arte, antes ilimitado, por um ponhado a mais de tostões. Enfim, em nome tão somente do lucro, da sua transformação em simples mercadoria. Esquecendo-se, com isto, que o valor de troca que têm não deriva apenas da sua crescente mercantilização, mas, sobretudo, do valor simbólico agregado ao longo dos anos sobre seus nomes e daquilo que representam. Valor este que vem gradativamente se esboroando, perdendo seu simbolismo, seu valor de troca e, sobretudo, de mobilização social. A derrota do Santos para o Barcelona, na final do Mundial de Clubes, foi o exemplo mais claro e nítido disto que estou falando.
           Por tudo isto, tanto Ronaldinho quanto a Seleção não tem mais brilho próprio ou não conseguem mais produzir dentro de campo o material capaz de continuar fazendo reluzir suas trajetórias.  O brilho dos dois, hoje, é muito mais um brilho falso, fosco, mareado, produzido de fora, em especial pela mídia nacional. A única a tentar sustentar o insustentável mediante um discurso vazio que nem o mais fanático dos fãs-torcedores acredita mais: o de que o futebol brasileiro ainda é o melhor do mundo e o de que Ronaldinho ainda é um gênio do futebol. A mídia, em especial as Organizações Globo, é a única a sustentar este discurso, não tanto por acreditar nele, mas porque tem nele a salvaguarda de alguns de seus mais caros interesses econômicos e midiáticos. Tanto é que a Seleção Brasileira, hoje, é quase que um produto exclusivo da Globo, que a pretexto blinda o Sr. Teixeira de qualquer denúncia que envolva suas maracutaias e tramoias. Diante disto, tanto a Seleção Brasileira quanto Ronaldinho Gaúcho tem se transformado apenas em produtos da mídia, em mercadorias nas mãos de capitalistas gananciosos e corruptos. Têm deixado de empolgar e mobilizar torcidas e torcedores na mesma proporção que enchem seus bolsos de dinheiro.
         É por tudo isto que acredito que dificilmente veremos ou assistiremos mais a Ronaldinho e a Seleção arrancar aplausos de seus torcedores e dos rivais por conta do espetáculo dado em campo, por conta da obra de arte produzida nas telas das quatro linhas, como no episódio em que Ronaldinho foi aplaudido por uma torcida madridista embasbacada, dentro de sua casa, com a obra do mestre. Dificilmente assistiremos, pelo menos nós próximo anos, a nossa Seleção encantar o mundo com a mais perfeita partida de futebol já jogada por uma seleção em copas do mundo, como na final da Copa de 1970. Pelo andar da carruagem nos resta apenas contemplar, tanto em relação a Ronaldinho quanto a nossa Seleção, as obras primas que um dia produziram e que se encontram cada vez mais distantes de nós no tempo e de uma possível próxima produção. Cada dia mais apenas como obra de museu ou na memória daqueles que os assistiram jogar e presenciaram a produção de suas obras em campo: sem maquiagem, sem flashs, sem edições e marquetagens. Apenas com o talento do artista e o seu material de trabalho: o campo, o par de chuteiras, o uniforme, o seu corpo e a bola.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O problema de nosso tempo: Um problema de cultura, de civilização.

              Realmente acredito muito nos homens. Mas, diante dos acontecimentos que explodem a nossa volta essa crença tem esmaecido um pouco, tenho ficado bastante preocupado com o rumo que as coisas andam tomando. E ao mesmo tempo um sentimento danado de impotência, de não poder fazer muita coisa - a não ser escrever, tentar racionalizar os acontecimentos, buscar saidas e linhas de fuga, sempre procurando praticar o contrário do que ai está posto - diante do que estamos vivendo. Ultimamente uma conciência aguda tem me tomado diante de um futuro que vislumbro não ser tão radiante para nós, nossos amigos, filhos (no meu caso) e familiares. Paradoxalmente, ao mesmo tempo, vislumbro várias saidas, várias possibilidades de mudança de rumo. E ai o que me deixa realmente preocupado, é que são cada vez mais poucas as pessoas que caminham nesta outra ou nestas outras direções. Mas, não posso deixar de acreditar nos homens, sob pena de sucumbir antes do tempo, antes da vida vivida até o seu limite.
          Um limite que parece se mostrar cada vez mais próximo, à medida que nos deparamos diante de vários umbrais de intolerância, de deslegitimação do outro, de extermínios silenciosos e consentidos, de perdas de direitos conquistados por árduas lutas ao longo de séculos a fio, diante do retorno de um conservadorismo religioso que jazia moribundo nos destritos da história, e que vemos ressucitado dia após dia por aqueles que se dizem defensores da democracia do cacetete. Estamos diante da tranformação cada vez mais rápida das relações afetivas e pessoais em relações marcadas pela lógica do mercado, do lucro, da capitalização de ganhos e perdas. Diante de um mundo em que o amor como causa parece destruir e fazer sofrer muito mais que o ódio. Um mundo em que as paixões são cada dia mais individualistas e para a satisfação de prazeres individuais (paixão pelo carro, pelo apartamento novo, pelo cachorro de estimação, pelo dinheiro etc, quase nunca pelo outro ou pelos outros). Um mundo em que a violência tem se tornado a cada dia mais desmedida, fria, calculista, racionalizada, banalizada, sendo praticada a qualquer preço ou a preço nenhum, tão simplesmente pelo sórdido prazer de ferir, de matar, de destruir. Um mundo onde o fazer sexo, o tranzar vem se reduzindo a uma prática cada vez mais banal, para alguns menos importante até do que a roupa que vai vestir ou o equivalente a troca da mesma, ato banal. Um mundo em que os sentimentos mais comezinhos carreiam de forma assustadora em todos os ambitos da sociedade. Um mundo em que palavras como solidariedade, amizade, sociabilidade vem perdendo os seus significados, perdendo a capacidade mobilizadora e de aglutinação social. Sem dúvidas, um futuro sombrio nos cerca, nos espreita. No momento ele ainda não é real, mas se constitui numa ameaçadora virtualidade.
           O que não podemos é permitir que esta virtualidade se torne tão real ao ponto de termos de empunhar armas para derrubar os muros de sentido e significado que ela venha a erguer. Foucault nos ensinou que é nas situações limite que as saidas e as linhas de fuga também aparecem, precisamos ficar atentos e aproveitá-las, desviando o maior número de pessoas possíveis do labirinto de caminho único em que o nosso mundo, a nossa cultura, a nossa civilização está nos enredando, sob pena de capitularmos antes de chegarmos ao limite.

Mais uma vez sobre a violência de nossos dias.

              A cerca de dois ou três dias atrás um acontecimento chocou a sociedade paraibana. O estupro e a morte premeditada de duas jovens e  o estupro de mais outras três numa festa particular na cidade de Queimadas, por parte de jovens aparentemente de classe média, brancos, educados nos melhores colégios e pertencentes aquilo que os colunistas sociais costumam chamar de "sociedade". A consumação do fato - para utilizar uma linguagem policial - se deu de forma fria, premeditada, calculada, sordida, permeada por uma brutalidade e uma animalidade atroz e sem nenhuma motivação aparente, apenas a violência gratuita, pura e simples. Os instintos humanos aflorando da forma mais primitiva e selvagem - para usar alguns termos criados por nosso processo civilizador para nomear aqueles que nele ainda não se inseriram - possível. Mas, será mesmo? será apenas selvageria, barbárie, primitivismo ou será o uso racionlizado de nossas forças, de nosso intelecto para aquilo que há de pior no humano que nos tornamos? Não acredito que estamos nos embrutecendo, nos animalizado e que aqueles jovens sejam o exemplo cabal disso. Mas, antes, creio que eles e suas práticas nefastas são o produto mais bem acabado de nossa sociedade e de nossa cultura, são a expressão máxima de nosso tempo. Tempo este que vem naturalizando a violência e a sexo em todas as suas dimensões e sentidos, sem nenhum constrangimento, sem nenhuma culpa, sem nenhum pudor ou vergonha.
           O problema não é apenas de impunidade, de falta de educação, de carência de leis mais duras ou draconianas, da falta de código normativo que reestabeleça o olho por olho e o dente por dente. Estes acontecimentos não cessarão apenas com a correção ou aplicação de tais medidas. O estabelecimento da pena de morte não diminuirá o acontecimento destes fenômenos, muito pelo contrário, pois a pena de morte punibiliza apenas de forma diferenciada aquilo que já acontece a séculos, mas que não ganhava a dimensão e a publicidade que se observa nos dias que correm. Uma nova punição, mais dura, mais pesada, mais justa na visão de alguns, talvez aumentasse apenas a sensação de justiçamento na sociedade, mas não poria fim ao problema. Ao contrário, criaria outro, talvez mais atroz e mais brutal ainda, em especial na nossa sociedade, permeada que é por gritantes diferenças sociais e constituída por relações de poder e de força estremamente desiguais entre seus grupos constitutivos.
           É notório que o sentimento de indignação, de revolta, de impotência que toma de conta de grande parcela da sociedade diante de acontecimentos como estes. Mas, estes sentimentos não podem servir de esteio para discursos tão perversos quanto as práticas cometidas por aqueles ? - não sei que palavra usar, meu vocabulário não têm palavras para nomeá-los -, não podem servir de pretexto para reinvidicações autoritárias, para a exigência do estabelecimento de um legalismo facista que tem como horizonte o extermínio do outro e muito menos para reproduzir a cultura de nosso tempo, profundamente caracterizada pela banalização e naturalização da violência e do sexo. Nosso maior problema não são de falta de leis ou de punição. Nosso maior problema é de civilização, de cultura. Estamos descambando para o facismo, nas suas expressões mais vís, tanto individuais quanto coletivas, de forma cada ve mais racionalizada e parece que ninguém se dar conta.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Eleições, corrupção e cultura política nacional.

             
           Uma das estratégias preferidas dos políticos brasileiros, sobretudo os de direita, conservadores e reacionários, é se ancorar na muleta do combate a corrupção, principalmente quando lhes faltam o esteio de propostas e projetos sólidos, seja para o país, o estado ou um município no qual concorra a cargo majoritário. Este comportamento é visível, por exemplo, em partidos como o PSDB e o DEM, que na falta de um discurso e de projetos para o país se ancoram na muleta, em grande medida produzida e sustentada pela mídia, do combate a corrupção. Bradam a favor do "ficha limpa", como se esta lei por sí só fosse resolver o problema da corrupção no país, como num passe de mágica. Como é mágico também o interesse súbito - por parte destes mesmos políticos - por tais propostas sempre as vésperas das eleições. Mal disfarçando, com isso, sua torcida escancarada para que um de seus adversários seja pego ou caia na malha não tão fina da justiça brasileira. Torcem como nunca para que o nosso não tão probo STF aprove para anteontem a lei da ficha limpa, porque essa é a única possibilidade que têm para viabilizar suas candidaturas natimortas.
             Essa parece ser a situação de alguns que se dizem candidatos a prefeito na maioria dos municípios de nosso país. Redundantes, tautológicos a propagandear um discurso monocórdico que só diz "ficha limpa", se sustentando apenas na muleta do combate a corrupção, se esquivando assim de discutir propostas e projetos objetivos para os municípios em que disputam eleição. Precisamos ficar atentos a estes expedientes, até porque as eleições estão batendo a nossa porta e até que me provem o contrário, nunca ví político algum, em período eleitoral, se colocar a favor da corrupção e da sua prática, por mais que esta seja uma prática recorrente a formar a subjetividade e a cultural política de quase todo brasileiro, de todas as classes sociais.

Abortamento e discriminalização do aborto.

             Com a nomeação da nova ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci - uma militante feminista histórica, defensora da descriminalização do aborto e do abordamento como um direito desdobrado do poder da mulher sobre o próprio corpo -, a questão do abortamento e da descriminalização do aborto voltou a pauta da maioria dos meios de comunicação e têm se tornado o centro de alguns debates políticos a nível nacional.
              Desde a campanha presidencial de 2010 que o tema do aborto havia sido silenciado ou colocado à margem por setores da imprensa e pelo governo. No entanto, nos últimos dias ele voltou a tona e mais uma vez, como em 2010, envolto e perpassado por posturas e discursos retrógados, conservadores, moralistas, religiosos, beirando o medievalismo católico e o calvinismo protestante de séculos atrás. Num misto de ignorância e moralismo tacanho, perpassado por interesses ideológicos excusos - veja, por exemplo, o tratamento dispensado por Reinaldo Azevedo ao assunto - alguns tentam confundir abortamento com descriminalização do aborto, numa clara tentativa de confundir a sociedade e colocá-la contrária a discussão do assunto. Pautando a discussão por um discurso moralista, religioso e retrógrado, parte da mídia e grupos de políticos ligados a Igreja Católica e a denominações protestantes tentam desqualificar a discussão e retirá-la do campo onde ela deve realmente está inserida, o campo da saúde pública.
              Em um Estado que se quer laico, esta discussão não pode ser pautada por moralismos religiosos ou colocada simplesmente como uma questão moral-teológica. O Estado têm de enfrentar tal situação e esclarecer a população que descriminalização do aborto não significa abortamento e mesmo que significasse, não compete as religiões arbitrar sobre tais questões em um Estado laico, democrático e de direito. O abortamento é claramente uma questão de saúde pública e discriminalizá-lo não significa acender o sinal verde para que todas as mulheres saiam abortando a torto e a direito. Mas, antes significa regulamentar este procedimento que a despeito da sociedade e do Estado é praticado cotidianamente por mulheres em situação limite, ou até mesmo por aquelas que escolheram interromper uma gravidez por uma escolha pessoal, individual e com a qual vai arcar com as consequências, de diferentes maneiras. O que não pode é o Estado fechar os olhos e deixar que essas mulheres morram como moscas em verdadeiros açougues, porque por falso moralismo ou por um moralismo religioso tacanho e medieval não regulamenta a sua descriminalização. Elas não podem mais ser tratadas como monstros, criminosas. 
            Portanto, urge que o Estado enfrente esta questão como deveria, sob pena de milhares de mulheres continuarem morrendo ao fazerem abortamentos em clínicas clândestinas, sem as mínimas condições de higiene e salubridade. Ou será que estas mulheres não têm também o direito a vida? Será que elas devem ser penalizadas com a própria vida por uma escolha que fizeram e que só diz respeito a vida de cada uma e a relação que matêm com o próprio corpo?

Sobre a violência de nossos dias.

            Não sei se estamos ficando mais violentos, mas certamente a violência contra o outro está se tornando muito mais banal e naturalizada, sendo praticada com uma frieza e sordidez descomunais e com uma constância ou uma visibilidade e publicização muito maior do que em anos atrás. E isto tem se exponenciando de tal maneira neste novo século a ponto de nos deixar perplexos e confusos quanto aos sentimentos que devemos nutrir para com tais práticas e principalmente em relação a seus autores. Barbárie, selvageria, violência, intolerância, desumanidade, crueldade, maldade. Talvez, um pouco de cada uma dessas coisas. Mas, tenho o sentimento de que estas palavras não conseguem mais dizer estes fenômenos que ocorrem no nosso tempo. E quando as palavras começam a se desgastar é sinal de ques tais práticas têm e terão um alcance muito maior do que aqueles que conseguimos supor ou designar com nosso vocabulário carcomido. Sem dúvida, tudo isso é fruto de nossa sociedade, de nossa cultura e de tudo aquilo que ela é capaz de produzir, e neste momento não vejo palavra melhor para descrever nosso horizonte: facismo. Talvez, uma palavra forte demais, mas que parece comportar todas estas práticas, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo, que explodem cotidianamente e numa velocidade cada vez mais curta de uma para outra. Infelizmente, os últimos acontecimentos (cracolândia, Pinheirinho, Estupro coletivo na Paraíba etc.) não serão os últims e nem os derradeiros dos mais violentos.