sexta-feira, 12 de abril de 2013

FUNDAMENTALISMOS E INTOLERÂNCIA

         Impressiona como ao longo dos últimos anos práticas e discursos fundamentalistas vem se espraiando por todos os meandros de nossa sociedade. Quase sempre ancorados na ideia de que se vivemos em um mundo democrático tudo é possível de ser dito e praticado, alardeando assim uma concepção grotesca de democracia que tudo permitiria e/ou possibilitaria. E, diante disto, o que é mais estarrecedor é a postura intolerante que tem se tornado característica de muitos. Pessoas que se aferram em suas opiniões, que renunciam ao diálogo, a escuta do outro. Pessoas para quem suas opiniões, sejam elas quais forem e a respeito do que for, se bastam. Pessoas que se recusam a mudança, ao dissenso, ao contato com a divergência, com a diferença, com o outro, sobretudo quando este outro não é o seu espelho, quando este acusa a sua diferença e questiona a sua suposta normalidade. 
       A frase típica destes fundamentalismos é a seguinte: "esta é minha opinião, e pronto". "Não tente mudá-la, vivemos numa democracia". A experiência dos fundamentalismos no nosso tempo parece refletir a dificuldade e o estranhamento cada vez maior da convivência com o outro, sobretudo com o humano no outro, em especial quando este outro expõe, escancara nossos medos, nossas fraquezas, nossas angustias e temores, quando este outro questiona radicalmente aquilo que acreditamos ser. E isto tem se tornado patente principalmente entre os jovens, que expressam cada vez mais uma recusa impressionante em escutar o outro, em mudar seus posicionamentos, em aceitar a divergência e a diferença em nós, em entender que um mundo democrático se faz da divergência e não no aferramento radical a determinas posições, no eu penso isso e você pensa aquilo e ponto final. No você não tem o direito de querer mudar minha opinião, porque esta é minha opinião e pronto. Neste sentido, nosso mundo parece padecer da falta de experiência, tal como falava Walter Benjamim, que nos permite ser um pouco mais sábios e ainda contemplar uma aura de tolerância em nós e nos outros.

EM DEFESA DA DIFERENÇA.

       Esta balburdia em torno da figura tosca, grotesca do Pastor Marcos Feliciano, um aspirante a Bolsonaro, que antes de qualquer coisa está se deliciando com seus 15 minutos de (in)fam(i)a, já está ganhando contornos de dramalhão mexicano, onde, no final, todos saem perdendo, inclusive, e, sobretudo, o espectador, tamanha canastrice dos atores envolvidos. O que se exponencia em tempos de internet e redes sociais, onde a maioria deixa de ruminar as informações e passam ao típico comportamento bovino em estouro de manada. 
          De um lado, aqueles que se armam em torno de uma verdadeira cruzada religiosa sem fundamento e sem sentido, pautada apenas no obscurantismo de posturas retrógradas e reacionárias, quando não preconceituosas, racistas e intolerantes. De outro, militantes "gays" que no afã de reivindicarem direitos mais que justos degringolam para a militância intolerante, para um embate desnecessário do qual os resultados nem sempre são os esperados, pois, na maioria das vezes, o discurso que assumem é o da identidade fixa, princípio de todo movimento político de afirmação, mas que ao fim e ao cabo descamba para posturas intolerantes e para o não diálogo, para um debate vazio e acéfalo que em nada contribui para a construção de uma sociedade que não só respeite as diferenças, mas que a aceite como uma das características fundamentais daquilo que somos: humanos. 
       Neste sentido, este debate, da forma como vem sendo travado, passa ao largo de um suposto embotamento da realidade que se ergueria como uma cortina de fumaça para o velamento de assuntos mais estruturais - a nossa realidade política, por exemplo -, como procura sugerir certas leituras marxistas. Passa ao largo também de uma suposta perseguição religiosa ao mundo cristão, uma espécie de cristofobia, como querem alguns fundamentalistas. Isto dificilmente ocorreria no Brasil, país predominantemente cristão (seja católico ou protestante), inclusive entre a sua população "gay". Portanto, o discurso da perseguição religiosa não se sustenta, não tem fundamento. 
         A reação a figura de Feliciano em nada tem a ver com o fato dele ser ou não cristão, mas, sobretudo, ao fato de defender posições e estimular práticas que não condizem com a dignidade humana, de propalar um discurso de origem racista, homofóbica e, por que não dizer, facista que não deveria caber mais em nossos dias, em nossa sociedade. Portanto, o debate não se trata de uma renhida disputa ou "guerra", como muitos espíritos de porco (perdoem-me os porcos) querem fazer crer e guiar a muitos, entre "Cristãos" e "Homossexuais", mas se trata ou pelo menos deveria se tratar do combate à praticas e a discursos que jamais deveriam ser tolerados, pronunciados e aceitos por uma sociedade que se quer civilizada e racional, que se diz humana, mas que a cada dia que se passa tolera menos o outro, o humano no outro, em especial quando este outro não é o seu espelho. É para esta batalha que deveríamos canalizar nossas melhores energias e não para dar ibope a um mequetrefe da estirpe de Marcos Feliciano. Sem mais.

DEMOCRACIA E DIFERENÇA OU DEMOCRACIA É DIFERENÇA?

           Os umbrais de intolerância estão sendo postos de pé em praticamente todas as esquinas de nossa sociedade. Talvez, em nenhum outro momento da história eles parecem ter sido erguidos de forma tão rápida e travestido de práticas ditas democráticas e em nome da liberdade de expressão como agora. O direito ao livre pensamento não significa direito a livre expressão e esta não é um valor absoluto que pode ser traduzido como sinônimo de democracia. Esta contempla outros valores, outros conceitos, todos eles forjados nas lutas políticas cotidianas que constituem e instituem a vida em sociedade. 
           Tomar por absolutos tais conceitos é negar ao nosso mundo a capacidade de escolher, no embate das lutas e conflitos cotidianos, não o melhor dos mundos, mas o mundo possível de se viver, um mundo para o nosso tempo, um mundo para a nossa sociedade. Uma sociedade cada vez mais plural, múltipla, constituída de diferenças e que não se permite mais enquadrar pelas lentes do mesmo, do discurso único, totalitário que tais umbrais pretendem erguer e tentam forçar todos a atravessá-los, como se estivessem a defender O Bem, A Justiça e A Verdade. Esquecem do fundamental, de que o absoluto é apenas mais uma perspectiva, que na maioria das vezes, não tanto como conceito, mas, sobretudo, como prática, fere a dignidade humana, violenta aquilo que nos é mais humano, demasiado humano: a diferença que nos constitui.

NÃO SE PODE TOLERAR O INTOLERÁVEL.

         Sempre acompanho o debate político em nosso país com afinco e bastante cautela, principalmente aquele sustentado pelos meios de comunicação de massa. Nestes últimos dias um assunto em especial tem me chamado a atenção, qual seja: a eleição do pastor Marcos Feliciano para presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Este tema me chama a atenção não pela eleição em si, mas pelos argumentos utilizados pelos defensores de sua postulação e, sobretudo, de sua assunção no cargo em questão. Um dos argumentos mais utilizados é o de que vivemos em uma democracia e de que a diversidade de opiniões devem ser respeitadas, inclusive as do pastor Feliciano. 
           No entanto, suas opiniões e visão de mundo ferem aquilo que Hannah Arendt chama de dignidade humana. Viver em uma democracia não significa ter o poder de dizer tudo o que se quer e, principalmente, pregar isto como profissão de fé e pedra angular de uma verdade absoluta. A democracia não permite que em nome dela se faça apologia da violência e do preconceito contra o que é humano, demasiado humano. Tolerar - será que é possível tolerar o intolerável ? - um pensamento conservador não significa permitir que ele se imponha como força de verdade sobre todo um coletivo, sobretudo quando este pensamento é reacionário, retrógrado, ultrapassado, fundamentado em preceitos e interpretações obscuras que incitam a violência, a intolerância, a exclusão, a demonização, a negação do outro, do diferente.
         Dizer que os discursos e pronunciamentos de Marcos Feliciano são aceitáveis, porque vivemos em democracia, é compactuar com o que de mais nefasto às sociedades humanas já produziram, é assumir uma postura facista, é dizer que se um Hitler fosse possível no mundo de hoje - e infelizmente ele ainda parece ser possível - suas opiniões e visão de mundo também seriam aceitáveis, pois vivemos numa democracia. Antes de qualquer coisa uma democracia deve ser um regime não apenas de governo, mas, sobretudo, de vida em sociedade que problematize e lute contra qualquer ato, evento, acontecimento que fira a dignidade humana e tente reduzir a diferença que é inerente a esta condição ao autoritarismo da verdade absoluta, seja ela de cunho político, religioso ou de qualquer outra vertente. Numa democracia não é possível tolerar o intolerável.