Gostaria agora de
passar a tratar de assuntos mais pontuais em relação à educação brasileira. Mas,
que de uma forma ou de outra não deixam de estar relacionados às questões já
tratadas até aqui, na primeira parte deste texto. O primeiro ponto que gostaria
de abordar é o financiamento público da educação nos níveis fundamental e médio
em nosso país – e aqui tratarei apenas dos casos da escola pública e somente
quando necessário reportar-me-ei às escolas privadas – e as responsabilidades e
competências dos entes federados diante dela.
Ao longo dos últimos
anos têm se estabelecido uma discussão candente em torno da necessidade de se
aumentar o valor destinado pela União para ser aplicado na educação em nosso
país. A maioria dos especialistas, das centrais sindicais e dos movimentos
sociais ligados à educação é taxativa em apontar para a necessidade de uma
elevação do repasse dos atuais 5% para 10% do nosso Produto Interno Bruto –
PIB, sob o argumento de que só com este montante de investimentos poderemos ter
realmente uma educação pública, gratuita e de qualidade em nosso país. Esta elevação é apontada como a última
formula mágica para se resolver, de uma vez por todas, todos os problemas da
educação no Brasil. Quantas fórmulas mágicas já forma inoculadas em nosso
sistema educacional!!! E agora mais uma.
No entanto, não vejo
esta elevação de valores com tão bons olhos, principalmente se tentarmos
vislumbrar que, por si só, ela não resolverá os problemas de nosso sistema
educacional como um todo. Não porque seja contra o aumento dos repasses, não.
Mas, porque entendo que, antes de serem implementados, outros impasses têm de
ser resolvidos para que o dinheiro destinado cumpra realmente com os objetivos
de sua destinação e chegue onde realmente necessita chegar. Digo isto, pois,
acredito que o principal problema da educação pública no Brasil não é
basicamente de falta de dinheiro, este já foi um dia, mas sim o gerenciamento e
aplicação do mesmo, principalmente por parte dos gestores municipais e
estaduais, em especial pelos primeiros.
É certo que o sistema
de educação pública no Brasil padece de um grave problema de infraestrutura
(falta de escolas, escolas em condições precárias, salas de aulas mal
projetadas e abarrotadas, falta de bibliotecas e espaços adequados para o uso
de novas tecnologias e recursos didáticos, a falta dos próprios meios áudios
visuais etc., etc.) que só podem ser equacionados com o aumento do investimento
na educação. Mas, a meu ver estes problemas encontram seu principal entrave não
na quantidade de dinheiro que é repassado para o investimento direto em
educação – sobretudo nos últimos oito anos, período no qual tais recursos vêm
aumentando ano a ano – mas, no seu mau gerenciamento e desvio por parte,
sobremaneira, de gestores municipais e estaduais.
Os mecanismos de
distribuição dos investimentos em educação criados pelo Governo Federal,
sobretudo a Lei do FUNDEB – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação –
têm possibilitado uma distribuição mais igualitária e equitativa dos recursos
federais destinados a estados e municípios. No entanto, estes recursos que são
enviados para serem aplicados prioritária e exclusivamente na educação, quando
chegam a seu destino, em especial na maioria dos municípios, são desviados de
seus objetivos e se esvaem por vários ralos: em especial o da corrupção e o da
apropriação indébita de dinheiro público para fins particulares. O dinheiro do
FUNDEB é uma verdadeira mina de ouro para um sem número de prefeitos corruptos
e inescrupulosos. E isto, infelizmente, é um problema presente em praticamente
todos os municípios brasileiros. Tais práticas têm se tornado um habitus entre aqueles que administram
tais municípios, assim como também permeia o imaginário daqueles que pretendem
um cargo público de gestão. A corrupção tem se tornado um elemento definidor da
cultura política brasileira e vem sendo subjetivada com certa naturalidade por
boa parte da sociedade. E isto parece se agravar sobremaneira nas menores
unidades federativas da nação, os municípios; principalmente nos menores onde
os meios de denúncia e combate a tais práticas são parcos ou inexistentes.
Fruto de uma dificuldade
da própria sociedade brasileira, nas suas várias nuances e matizes, em separar
o público do privado, em estabelecer uma dissociação clara, nítida entre a
esfera do público – sobretudo, o público entendido como o Estado – e a esfera
privada; suprimindo assim a distância entre os interesses particulares,
familiares ou de pequenos grupos dos interesses da coletividade, num movimento
em que os interesses daqueles são legitimados e justificados como sendo os
interesses de todos. Desta forma, o Estado brasileiro nas suas várias esferas e
entre suas entidades federadas não conseguiu, ainda, cumprir aquela que segundo
Philippe Àries e Roger Chartier se configura como uma das principais
características do mundo moderno, que é a construção do Estado como principal
agente e símbolo, por excelência, da esfera pública. No Brasil, este parece estar
cada dia mais contaminado por interesses privados e/ou privatistas.
Isto se deve ao fato de
que no Brasil a configuração e a construção do Estado moderno tomou características
e rumos diversos daqueles experimentados pela maioria dos países Europeus e
pelos EUA, por exemplo. A construção do Estado Nacional, moderno, no Brasil, se
deu, desde o final do período colonial, mediante a imbricação com interesses
particulares, ora de determinadas famílias, ora de certas oligarquias
regionais, ora das elites como um todo, ora do “mercado” e quase nunca como um
instrumento ou instituição a serviço da coletividade ou de seus interesses
maiores. Desta forma, a sobreposição dos interesses particulares aos interesses
públicos, desde o início da colonização da América Portuguesa, sempre se
fizeram presentes como uma marca da história da administração deste território
que hoje chamamos de Brasil. E isto só tem se agravado ao longo do tempo,
estabelecendo-se e petrificando-se em uma cultura política que adoça o
apadrinhamento, o clientelismo e o privilégio como prática cotidiana e a corrupção,
a malversação do dinheiro público e a apropriação indébita como meios de
garantir a sua perpetuação enquanto habitus
característico de nossa sociedade e de suas práticas políticas, em especial
no trato com a coisa pública.
Nos dias de hoje, estas
praticas tornam-se mais enfáticas e problemáticas ainda nos pequenos municípios
do país. Onde a maioria dos prefeitos desconhece ou são indiferentes a qualquer
princípio de ordenamento ou separação da esfera pública da esfera privada,
sobretudo no trato dos bens públicos e dos recursos financeiros por ele
geridos. Na maioria dos casos, os bens públicos são tratados e vistos como
coisa de ninguém e, portanto, a meio passo de serem usados como uma extensão do
patrimônio privado do gestor de plantão. Destino semelhante encontra boa parte
dos recursos financeiros, prontamente endereçados, das mais variadas formas,
aos bolsos do prefeito e de uma meia dúzia de apaniguados que se servem do
mesmo com a mesma largueza que os nobres medievais esbanjavam em seus banquetes,
ou seja, gastando sem se ver quanto vai pagar e, principalmente, quem vai pagar
a conta.
Isto parece derivar do
fato de que a maioria dos gestores destes pequenos municípios não se percebe
apenas como gestores da coisa pública a serviço da sociedade que os elegeu. Não
se percebem como representantes de uma instituição, mas, na maioria das vezes,
se colocam como a própria instituição, personalizando-a, incorporando-a e,
neste processo, fazendo dela seu feudo, sua propriedade. Tanto é que na maioria
das pequenas cidades brasileiras boa parte da população não compreende o papel
institucional da Prefeitura como um desdobramento federado do Estado Nacional,
mas observa tão somente o prefeito como figura central e fundamental do
processo. Neste sentido, o prefeito incorpora o papel do soberano, do Estado,
da autoridade máxima a despeito até do próprio Estado Nacional, que muitas
vezes aquele procura incorporar, seja legislando, dirimindo conflitos ou
executando seus afazeres, regidos pela velha máxima “para os amigos a lei, para
os inimigos os rigores da lei”, mas não qualquer lei, e sim a lei de seus
interesses.
É neste contexto que as
verbas destinadas pelo Governo Federal para educação, mas também as de outros
setores são apropriadas e geridas. Ou seja, como parte do patrimônio do
prefeito. Os recursos são tidos como seus e ele os gere, os gasta ou não, como
bem entende. Destarte, os mecanismos de controle destes recursos, quase todos
eles inoperantes ou viciados pelos interesses dos prefeitos. Um exemplo cabal
disso são os Conselhos Municipais de fiscalização do FUNDEB, que por lei têm
autonomia para fiscalizar a aplicação dos recursos do Fundo e cobrar a sua
correta utilização. Mas, na verdade terminam por não funcionar, tendo em vista
que os prefeitos o viciam colocando na sua direção os seus apaniguados mediante
eleições promovidas na surdina, no apagar das luzes, sem a divulgação,
conhecimento e principalmente participação da sociedade civil no processo de
escolha.
É por esta e por outras
que acredito que não adianta apenas aumentar a carga de investimentos de 5%
para 10% do PIB nos próximos anos sem antes ou em paralelo se fazer uma
redefinição destes mecanismos de controle e fiscalização, visando limpar seus
vícios e possibilitar que eles realmente funcionem e cumpram com seus objetivos
que é fiscalizar e zelar pela boa aplicação dos recursos públicos destinados a
educação. A educação brasileira, em alguns aspectos, urge por maiores
investimentos, isto parece ser inegável, mas mais urgente e inegável ainda é a
necessidade de aprimoramento dos mecanismos de fiscalização, controle e
aplicação destes recursos, sob pena de que, se algo não for feito, boa parte
dele continuar escorrendo pelo ralo da improbidade administrativa, da
malversação do dinheiro público e inúmeros outros ralos que alimentam a
corrupção cínica e descarada que tomou de assalto às práticas administrativas
da maioria das gestões municipais de nosso país.
De um ponto de vista
mais geral este fenômeno tem a ver com dois processos simultâneos e que se
intercambiam, quais sejam: por uma lado, a crescente publicização do espaço
privado, e por outro, a privatização daquilo que é púbico ou do interesse
público pelo mundo privado. Duas faces de uma mesma moeda. Exacerbando e
deformando em grande medida aquilo que Deleuze observou como sendo uma das
principais características das “sociedades de controle”, a fusão do capital com
o Estado. Que em nosso país tem tomado outra configuração distinta daquela
analisada por Deleuze, à medida que no Brasil é cada vez mais premente o uso do
Estado para substancializar e expandir a autoridade dos interesses privados,
sobretudo os interesses econômicos e financeiros de uma minoria abastada e
ciosa da manutenção de seus privilégios em detrimento dos interesses coletivos,
do bem comum e da coisa pública. Para termos uma ideia bem clara disso, basta
observarmos o número cada vez maior de grandes empresários e comerciantes que
se arvoram disputar e pleitear nas eleições municipais ou estaduais um cargo
público majoritário, ou até mesmo cargos de deputado – estadual ou federal. Há
uma quantidade enorme de prefeitos, deputados, senadores e até governadores
Brasil afora que são grandes empresários, bem sucedidos em seus negócios –
Armando Monteiro Neto, Blairo Maggi, João Lyra Neto, etc. só para ficar nos
exemplos mais clássicos – e que se utilizam das prerrogativas dos cargos que
ocupam para fazer prevalecer os seus interesses particulares e dos grupelhos a
que representam. E isto se agrava ainda mais a nível municipal, por todos os
fatores já discutidos até aqui e mais alguns outros.
Neste sentido, junte-se
a este caldo a visão provinciana da maioria dos prefeitos de pequenos
municípios do país ou das elites governantes destas localidades, ciosas por se
manterem como tal. E para tanto não medem meios, sobretudo forjando alianças
entre o poder político e o poder do dinheiro local como forma de preservar os
seus privilégios políticos e sociais. Para esta casta parece ser inadmissível,
por exemplo, pensar, permitir ou supor que fora dela possa haver ou existir
outra categoria também endinheirada e com qualquer tipo de autoridade e poder
de persuasão sobre a sociedade como um todo. Em especial se esta outra casta
for formada por funcionários públicos – vistos quase sempre por prefeitos e gestores,
como peões, seus peões –, em especial professores, que apesar dos pesares,
dificilmente aderem a discursos eleitoreiros ou às pressões políticas dos
gestores municipais. Sobretudo, quando são funcionários efetivos. Para a maioria
destes prefeitos o professorado é uma categoria petulante, uma das únicas nos
municípios que ainda não se deixa dobrar como peões, que muitas vezes
minoritariamente afrontam o poder “soberano” decretando greves e paralizações.
Categoria diante da qual boa parte dos prefeitos destas pequenas cidades se
sente inferiorizados intelectualmente, pois quase sempre semianalfabetos ou com
baixíssimo grau de escolaridade, a maioria quando muito tendo terminado apenas
o ensino médio.
Talvez, isto explique,
por exemplo, o discurso de alguns destes políticos que acreditam e alardeiam
que educação se faz com amor ou por amor, sem a necessidade de uma remuneração
digna e a altura do desafio. Para que fazer afagos financeiros a uma categoria
que já é petulante mesmo recebendo o que recebe? Parece ser assim que a maioria
dos prefeitos de nosso país enxerga a nós professores ou nos tem enxergado ao
longo dos anos.
E isto tem levado a um
agravamento da desvalorização social do professor ao longo dos últimos anos. A
profissão tem se tornado extremamente mal vista, sobretudo por conta dos
péssimos salários percebidos pelos professores, em especial se comparado com
profissionais de outras áreas e com o mesmo nível de formação. Isto tem gerado
um ciclo vicioso na profissão, à medida que as licenciaturas têm atraído cada
vez menos alunos, e aqueles que acorrem a elas são de longe os menos
talentosos. Deficiência de recursos humanos. Baixa qualificação, formação
cultural precária. Esta é a realidade de nossas licenciaturas. Mas, isto não é
o mais grave. O mais grave é que a maioria das pessoas que escolhem uma
licenciatura o fazem, na maioria das vezes, por no momento não terem outra
opção. Ou seja, por não conseguirem entrar em outro curso mais “renomado” e com
possibilidade de retorno financeiro maiores ou simplesmente por uma questão de
sobrevivência, não podendo entrar em qualquer outro curso ou não conseguindo um
emprego público bem remunerado, só lhes resta às licenciaturas. Com isto as
licenciaturas vêm perdendo seus melhores quadros, muitas vezes para profissões
não tão importantes e centrais para o país como o é a de professor – um exemplo
disso são os milhares de alunos que se formam todos os anos nas graduações de
Administração e de Direito. E, além do mais, aqueles que se formam nas licenciaturas
o fazem muito mais por uma necessidade, para garantir sua sobrevivência do que
propriamente por escolha ou por prazer em seguir a profissão que escolheram.
Infelizmente, esses são cada dia mais a maioria dos profissionais em educação.
Este quadro faz com que
tenhamos dentro da sala de aula professores cada vez mais descompromissados com
a profissão, alienados de seus diretos e que pouco ou nada reivindicam em favor
de si mesmos ou de sua categoria. Primeiro, por acreditarem que a função que
estão a exercer não será para sempre, é algo temporário, um bico até que se
consiga “algo melhor”; segundo, por acharem que aquilo que têm ou ganham é o
suficiente ou o possível para sua sobrevivência pessoal e profissional,
principalmente na visão de pessoas sem maiores perspectivas de crescimento
intelectual profissional na área escolhida. Quantas vezes já escutei de colegas
de profissão o seguinte enunciado: para quem pouco ou nada tinha o que temos já
é alguma coisa, ou o pouco é muito para quem não tinha qualquer outra
perspectiva. Um exemplo disso é que pouquíssimos professores questionam os
“presentes” dados por alguns gestores em forma de not ou net books, tablets ou
os famigerados “rateios” de final de ano, tidos e vistos quase sempre como uma
bondade do prefeito para com a categoria. Outro exemplo gritante disto é que
quase nenhum professor quer que seus filhos sigam a sua carreira. Tragédia
maior, a própria visão que têm de si e da profissão que abraçaram, por prazer
ou por necessidade, é a pior possível. Profissão que não aconselham ser seguida
por ninguém e que não titubeiam em afirmar, se pudessem, se tivessem outra
oportunidade não a escolheriam mais, pois em grande medida foi a necessidade
que fez a oportunidade, para a maior parte daqueles que escolheram ser
professor.
Vivemos, desta forma,
uma crise sem precedentes de nossa profissão. Temos dentro e fora de sala de
aula – naqueles que ainda serão formados – os piores quadros profissionais se
se comparados com o nível intelectual, cultural e de formação – no sentido
estrito destes termos – daquele de outras profissões, que também não é tão
elevado assim. Profissionais que encaram a profissão de forma burocrática, para
os quais o “ensinar” é uma atividade rapidamente transformada em uma rotina
mecanizada, uma obrigação que tem de ser cumprida. Que passa primeiro pela
necessidade de se cumprir com horário de trabalho, em não levar falta e ver o
dia descontado no final do mês. Essa parece ser a preocupação maior, para a
maioria dos professores, como em qualquer outra atividade profissional de
caráter técnico. Neste sentido, a maioria destes professores vai para as salas
de aula muito mais em função do cumprimento de seu horário de trabalho e menos
em função do prazer – dimensão que deve estar na base do exercício de qualquer
profissão – de estar em sala de aula promovendo uma relação de
ensino-aprendizagem. Isto tem se tornado cada dia mais notório em praticamente
todas as escolas públicas do país.
Burocratização do
trabalho docente, rotinização de suas práticas, pouca qualificação
profissional, péssimas condições de trabalho e baixos salários. Esses são
apenas alguns dos fatores que tem contribuído para uma profunda desvalorização
social da docência e do professor como seu principal agente. Constantemente
têm-se apontado apenas os salários incompatíveis com o nível de formação
requerido pela profissão como o principal indicador deste processo, assim como
da má qualidade da educação brasileira. Talvez, possa ser isso mesmo, em
especial porque as coisas em nossa sociedade são cada vez mais medidas, pesadas
e avaliadas pelo seu valor de compra, venda ou troca, ou melhor, em função dos
valores monetários que envolvem ou mobilizam. E neste sentido, os salários dos
professores da rede pública no país tem um valor de compra, de venda ou de
troca baixíssimo, além de pouco mobilizar, seja simbólica ou diretamente, a
economia de nossa sociedade, principalmente se se comparado a outras
profissões, ou até mesmo a aqueles que estão inseridos nas redes particulares
de ensino, geralmente melhor remunerados. Não que estes professores das redes
particulares sejam melhores que os das redes públicas, na maioria das vezes são
os mesmos, mas a Educação como negócio em nosso país tem outro valor simbólico
e de troca dentro do capital social da sociedade brasileira.
No entanto, não
acredito que um aumento salarial significativo resolvesse os problemas da educação
no país ou apontasse por si só para a sua solução. Talvez tivéssemos um
redimensionamento do valor simbólico e de troca da profissão, em especial
daqueles que trabalham no setor público, aos olhos de nossa sociedade. Isto
porque, em grande medida o problema ou os problemas da educação brasileira são
um problema de cultura, de civilização, no sentido que Norbet Elias dá a estes
termos. E uma prova cabal disso é que o ensino das escolas privadas em nosso
país também não é um ensino de qualidade, tanto nos níveis fundamental quanto
no médio, principalmente se vislumbrarmos a produção do conhecimento como ponto
fulcral de um processo educacional de qualidade. Nossas escolas privadas seguem
praticamente os mesmos programas (curriculum, diretrizes, projetos etc.) das
escolas públicas, se diferenciando apenas destas últimas por questões de
estrutura, acompanhamento docente e discente, cumprimento mais regular dos
programas, presença da família junto à escola etc. Isto se torna patente, por
exemplo, no grande fosso existente entre o ensino fundamental e médio – seja
ele feito em escola pública ou privada – e o Ensino Superior no país, em
especial aquele praticado nas Universidades Públicas, de longe as melhores do
Brasil.
Portanto, um simples
aumento salarial por si só não resolveria um problema de cultura de nossa
sociedade. Problema que tem muito mais a ver com a falência da Escola enquanto
uma instituição que ainda funciona nos mesmos moldes que a modernidade a
instituiu e que faz circular também o mesmo modelo e propósito de conhecimento
pensado pelas luzes e pela ciência positivista. Como afirma Durval Muniz de
Albuquerque Jr. a esse respeito:
Entre todas as instituições que a modernidade fez
emergir, entre todas aquelas que a sociedade disciplinar proporcionou a
constituição, a escola é uma das mais exemplares, entre outros motivos por ser
destinada à produção de subjetividades, à produção de sujeitos, à construção e
veiculação de identidades, à definição de lugares de sujeito. A escola é uma
das instituições sociais da modernidade que continua existindo entre nós,
nestes tempos pós-modernos. Instituição que ainda goza de prestígio social, se
comparada com outras instituições modernas, como o manicômio e a prisão, cada
vez mais contestados e defrontados com propostas imediatas de extinção ou
reforma radical. Ainda não se imagina a possibilidade de uma sociedade sem
escola, da mesma forma que achamos possível vivermos sem manicômios. Como é
característica das instituições sociais, a escola, quase sempre, nos aparece
naturalizada, como se sempre tivesse existido, como se não fosse uma criação
social e histórica recente, como se não fosse pensável o seu desaparecimento.
Ao mesmo tempo, vozes de todos os lugares da sociedade enunciam a crise da
escola e, como também é comum na história das instituições modernas, propõem a
sua urgente e necessária reforma.
Nesta anunciada crise da instituição escolar, um
tema que se debate, cada vez com mais vigor, é o lugar do professor. Como fica
o professor nesta realidade escolar que parece se tornar cada vez mais hostil
às suas pretensões de ensinar, de ser o sujeito da formação dos alunos?
Atravessada e sitiada por mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais
diversas, a escola e com ela a profissão docente, tal como foi definida na
modernidade, parece estar em processo de se inviabilizar, ou, no mínimo, de
perder a importância e a centralidade social que já teve. O desprestígio social
do professor, da profissão docente, talvez tenha antecedido o próprio
desprestígio social da escola, do ensino escolar, talvez tenha sido um dos
primeiros indícios de que a instituição escolar já não gozava da irrestrita
legitimidade social que ainda se acreditava possuir. Este desprestígio social
do professor não se materializa, apenas, na redução progressiva de sua
remuneração, em todos os níveis de ensino, mas no próprio desprestígio da
profissão, na perda de status, de valor simbólico da profissão na vida social.
Problemas que tem a ver
também com a burocratização e a rotinização das relações ensino-aprendizagem do
que só propriamente com questões financeiras e salarias. Invertendo um
enunciado em moda há alguns anos atrás, este último aspecto parece ser apenas a
cobertura do bolo; mas do que serve a cobertura se a base “desonerou”, está
toda esboroada, quebrada, despedaçada. Não adianta investir apenas na cobertura
se nada se faz, simultaneamente, para reconstruir ou até mesmo inventar outra
base. Pois, como afirma Albuquerque Jr. porque não pensarmos em uma sociedade
sem escolas, já que cada vez mais aprendemos por outros meios e a partir de
outros lugares. Porque não uma escola de novo tipo, fundada em outros moldes,
antenada com o nosso tempo. Esta é uma possibilidade muito pouco ou nada
cogitada em nossa sociedade. Ainda continuamos crentes na reforma da Escola, da
forma que somos sabedores de sua crise. Mas certamente não será apenas uma
melhora salarial que irá mudá-la, modificá-la e torná-la compatível com as
demandas de nosso tempo.
Certamente uma melhoria
salarial iria contribuir para uma revalorização profissional da carreira
docente e sua reinserção positiva no imaginário social, mas, também, muito
certamente, isto não surtiria um efeito imediato, como muitos pensam e
apregoam, naquilo que é o mais grave, a crise na qual está inserida o nosso
processo educativo como um todo. Pois, estes problemas têm a ver também com o
fato da profissão docente em nosso país ser uma profissão eminentemente
feminina, sobretudo no nível básico e fundamental, onde quase 80 % ou mais do
quadro é composto por mulheres. E isto têm implicações seríssimas para o
processo como um todo, em especial numa sociedade como a nossa ainda
profundamente marcada pelo machismo, pelo mandonismo das práticas paternalistas
e patrimonialistas. Práticas estas que se acentuam sobremaneira entre os nossos
gestores, em sua maioria herdeiros de uma visão além de machista,
patrimonialista e paternalista da sociedade, mas também caudatários de uma
visão personalista e patrimonialista da administração pública, um universo
ainda predominantemente masculino em nosso país. Dentro deste universo ainda
masculino, machista, personalista, paternalista, patrimonialista etc. – onde
até mesmo depois da eleição da primeira presidente mulher, continua-se a
exaltar justamente suas qualidades que supostamente a aproximariam de um modelo
masculino de gestão (a gerentona, insensível, imparcial, racional, técnica
etc.) – este perfil feminino da profissão, é pensado e visto em grande medida
como um reduto de fragilidade política, em especial nos estados e municípios
governados por homens, ou seja, na grande maioria deles.
A própria organização
sindical da categoria, na maioria dos municípios, tem também este perfil
feminino, o que torna ainda mais complicado o enfrentamento político das
questões atinentes à categoria. À medida que as lideranças sindicais femininas
são geralmente vistas pelos governantes homens como incapacitadas para o debate
e a negociação, bem como tratadas com um olhar de superioridade e desprezo por
parte de gestores municipais e até mesmo estaduais. Fato este decorrente da
ideia ainda bastante vicejada na nossa sociedade de que o espaço público,
sobretudo o das disputas políticas, o balcão de negociação é um espaço de iguais
e para iguais, é um espaço privilegiado dos homens e para os homens e,
portanto, pouco afeito às mulheres, principalmente quando estas querem colocar
em questão decisões masculinas. Um duplo acinte e afronta ao poder masculino.
Boa parte de nossos prefeitos tem uma recusa enorme em sentar para discutir com
mulheres, principalmente quando se vêm confrontados com elas e por elas. O
“soberano” é duplamente afrontado, não só na sua autoridade, mas no poder que
supostamente a masculinidade ainda lhe confere perante as mulheres. Esse é o
imaginário que ainda permeia o nosso horizonte político.
Junte-se a isto o
bloqueio cultural erguido ao longo de séculos em e por nossa sociedade que
impedia, e, infelizmente, em muitos casos, ainda impede, a reação das mulheres
à dominação e ao mando masculino e que ainda não foi derrubado de todo. Permanecendo
ainda muito forte e estabelecido em alguns setores de nossa sociedade, em
especial entre as gerações mais velhas, composta geralmente por homens e
mulheres de mais de 40, 50 anos de idade e que, se não são mais a maioria dos
docentes em sala de aula, ainda representam uma boa parte deles. Isto faz com
que esta visão machista sobre a profissão não reflita apenas um entendimento
masculino, mas também das próprias professoras, da boa parte das mulheres que
estão em sala de aula, sobremaneira, nos pequenos municípios deste país. Boa
parte delas reproduz esta visão, sendo muitas vezes indiferentes às questões
políticas que envolvem a categoria. Muito ainda por acreditarem que é um debate
e uma luta que não lhes cabe, por acreditarem que este ainda é um espaço
masculino, de homens e para homens. Talvez, isto explique, por exemplo, que boa
parte das professoras quando em momentos de reivindicação, de paralização, de
luta política explícita, prefiram ficar na sombra, cuidando dos afazeres da
casa e dos seus. Vivencio isto nos dois municípios onde leciono, São José da
Coroa Grande e Água Preta, ambos na Zona da Mata Sul de Pernambuco. O que em
maior ou menor grau não deixa de ser também uma realidade por demais presente
na maioria dos municípios brasileiros.
Outro agravante desta
situação é a inoperância e inépcia da maioria dos municípios em gerir de forma
competente os recursos destinados à educação e assim virem a promover um ensino
de qualidade. E isto decorre de alguns fatores. O primeiro e, talvez, o mais
grave deles decorre da própria estrutura político administrativa de nosso país,
diante da qual reputo aos municípios a principal responsabilidade pelo
agravamento dos principais problemas que a nossa sociedade enfrenta, sobretudo
em relação à educação. Temos milhares de municípios governados por gestores
ineptos e inaptos, sem o mínimo de boa vontade política para promover uma
gestão do dinheiro público que beneficie os anseios da coletividade ou supra
com suas demandas básicas, em especial na promoção de uma educação de qualidade.
Sem contar que na maioria destes municípios não há sequer a construção de
planos estratégicos de gestão que visem planejar as administrações municipais a
curto, médio e longo prazos. As coisas são sempre feitas aos atropelos, sempre
a base do amadorismo, do improviso e do “assar para comer”. E desta forma os
recursos são, quase sempre, geridos para atender aos interesses
político-eleitoreiros do governante de plantão, assim como para o
enriquecimento privado do mesmo e de sua meia dúzia de apaniguados e apadrinhados
políticos. Que não medem meios em fazer da Prefeitura, do patrimônio púbico e
dos recursos a ela atrelados uma extensão dos bens privados daqueles, numa
clara reprodução da cultura do jeitinho, do privilégio, do patrimonialismo e da
corrupção, que se tornou endêmica em nosso país. Atingindo de forma sistemática
a quase todos, senão a todos, os municípios da federação, em todos os níveis da
administração pública. Uma administração que vem sendo cada vez mais
privatizada por interesses individuais, familiares ou de pequenos grupos ou
setores da sociedade.
A cultura do jeitinho,
do se dar bem a qualquer custo ou à custa dos outros têm se mostrado uma cruel
realidade de nossa sociedade, principalmente quando se trata da relação desta
com a coisa pública, tida quase sempre como coisa de ninguém e que, portanto,
qualquer um pode ou poderá vir a se apossar, tomar para si, assumindo não só o
seu controle, mas, sobretudo, o direito de usufruto em benefício próprio e não
mais da coletividade. Essa ideia parece ter se tornado um cultura assentada na
grande maioria dos municípios brasileiros, e dela não escapa a gestão da
educação, justamente esta que deveria contribuir para a construção de uma
cultura em contrário. Temos inúmeros prefeitos que sequer terminaram o ensino
médio – não que diploma de nível superior seja atestado de honestidade ou um
pré-requisito indispensável para uma boa gestão da coisa pública -, que mal
frequentaram os bancos escolares e que, portanto, tem um entendimento
extremamente limitado do que é a educação, em especial dos direcionamentos e
particularidades desta questão no Brasil, nos seus estados e, o que é pior
ainda, nos seus municípios. Incapazes de discuti-la com profundidade, seja seus
problemas, seja as possíveis soluções, terminam por entregar o controle da
Secretaria de Educação a um apaniguado seu, que muitas vezes é tão inepto e
inapto quanto.
Neste sentido, o que
mais vemos em nossos municípios são secretários de educação que pouco ou nada
entendem do metier. Desconhecendo a
estrutura da educação no país, suas injunções políticas, históricas, sociais,
econômicas e culturais e as possibilidades de melhoramento qualitativo que o
próprio sistema enseja. Por incompetência e ineficiência na gestão da mesma,
terminam por reproduzir modelos educativos já prontos, sem a mínima
problematização ou criticidade, como se fossem apenas meras receitas de bolo,
que servem para ser preparadas e comidas em qualquer lugar, independente dos
ingredientes disponíveis e do gosto que vai ter o resultado final. Desconsiderando
desta maneira as particularidades, os gostos e as demandas dos lugares onde
estão inseridos. Situação que se agrava também por que a maioria dos secretários
é totalmente subserviente ao prefeito e as suas vontades, em especial no
tocante ao uso dos recursos financeiros destinados ao setor. Isto vale também
para aqueles secretários que mesmo tendo um bom nível de entendimento do
processo, conhecendo seus problemas, com capacidade de vislumbrar projetos e
propostas para equacioná-los esbarram na falta de autonomia diante do
“soberano” para por em prática as suas ideias. Sobretudo, se estas implicarem
despesas acima daquelas que o prefeito esteja disposto a custear. Em especial
se esse custeio atingir aquilo que ele considera sua, e apenas sua, cota-parte
dos recursos destinados à educação.
Um exemplo bastante
claro disto que venho descrevendo é que praticamente nenhuma Secretaria
Municipal de Educação, principalmente dos pequenos municípios, procuram por em
prática um dispositivo criado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – LDBEN/96, ao qual reputo uma importância fundamental para se
promover o melhoramento da qualidade da educação no país, qual seja: a criação
dos Sistemas Municipais de Ensino – SME. O que permitiria, dentre outras
coisas, a cada município do país gerir sua educação de forma autônoma – e aqui
autonomia, assim como para LDB, não significa independência, mas sim a
construção de uma relação dialógica entre a realidade local e os planos mais
gerais, como, por exemplo, a microrregião, o estado, a região, o país, tendo
como parâmetro norteador o Plano Nacional de Educação – PNE – levando em
consideração as particularidades da realidade local para a definição, por
exemplo, de onde e como aplicar os recursos, qual curriculum construir e
definir de acordo com a realidade local, que sistema de avaliação promover,
etc. O mesmo vale para as escolas e suas gestões, que também deveriam ser
autônomos em relação às Secretarias de Educação e aos secretários, definindo
suas prioridades e demandas a partir da construção dos Projetos Políticos
Pedagógicos – PPPs de cada escola. Construídos, sempre, em consonância com a
realidade e interesses da comunidade onde a mesma está inserida e não dos
interesses dos secretários ou prefeitos.
Mas, infelizmente, nada
disso funciona ou é levado a efeito em praticamente nenhum município de médio
ou pequeno porte do país, onde os gestores são nomeados e indicados pelo
prefeito, assim como toda a equipe de coordenadores, supervisores e por ai vai.
O que é feito levando-se em consideração critérios muito mais
político-eleitoreiros do que a competência e o conhecimento de quem vão ocupar
o cargo e exercer a função. A LDB dispõe, por exemplo, que para os cargos de
gestão escolar dever-se-ia ser feito eleições junto à comunidade escolar para a
escolha dos mesmos. No entanto, este dispositivo é veementemente combatido ou
silenciado pela maioria dos prefeitos e seus secretários, que temem que esses
postos estratégicos da administração pública municipal caiam nas mãos de seus
adversários políticos, o que poderia lhes causar empecilhos às manobras de
desvio de dinheiro e malversação dos recursos destinados à educação.
Desta forma o desvio do
dinheiro público, a corrupção, a incompetência, a corrupção, a má gestão da
coisa pública, tomado quase sempre como bem privado, como propriedade
particular se constituem em grandes entraves ao melhoramento da qualidade da
educação no Brasil. Mas, que em grande medida não passam apenas pela
necessidade de redimensionamentos a nível federal, como um reajustamento dos
mecanismos de controle e fiscalização dos gastos públicos com educação em
estados e municípios e uma punição mais rápida, rígida e severa para quem o
desvia, mas, sobretudo – e ai a tarefa é mais difícil, mas não impossível, pois
é um problema da cultura política brasileira –, um redimensionamento das
práticas políticas e administrativas a nível municipal, por que ainda muito
distantes da sua modernização e ainda profundamente embebidas no
patrimonialismo, no clientelismo, no nepotismo indireto, no apadrinhamento, no
mandonismo, no machismo, no paternalismo, no personalismo e ainda por cima
envoltas na nuvem sombria da cultura do jeitinho, do privilégio e da corrupção.
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