sábado, 18 de agosto de 2012

OS HISTORIADORES, A DITADURA E A SOCIEDADE ATUAL: UMA LUTA PELA "JUSTA MEMÓRIA"?

            "Tanto o ESTADÃO quanto a FOLHA defenderam a deposição de um presidente eleito pelo povo e derrubado pelas Forças Armadas como 'defesa da lei e do regime'. A imprensa paulistana, apresentando-se como porta-voz da opinião pública, saudou a instalação de um governo autoritário e ilegítimo como se fosse democrático e legal. Os aspectos éticos dessa 'ação jornalística' e a falta de críticas - ou autocrítica - aos jornais e jornalistas são temas que merecem reflexão". (DIAS, Luiz Antonio. RHBN, Nº 83, 20012, p. 30).
            A citação acima bem que poderia ser referida às mais recentes coberturas midiáticas, em especial sobre o campo político e geopolítico sul-americano, das principais empresas de mídia do país, acrescendo-se às acima referidas o Grupo Abril e as Organizações Globo, sobretudo no trato de questões atinentes a "opinião pública", tais como a democracia, a liberdade de imprensa e expressão, entre outros temas fundamentais para a vida em sociedade. Recobro, por exemplo, o tratamento destes grupos a deposição do presidente, legitimamente eleito, do Paraguai, Fernando Lugo, recentemente deposto mediante rito sumário. Ao qual a imprensa brasileira saudou, aplaudiu, como na época de seu apoio ao golpe pátrio, como um movimento em defesa da constituição e, portanto, da legalidade e das instituições.
            Os procedimentos da grande mídia nacional, sobretudo aquela concentrada em São Paulo e Rio de Janeiro, parece não ter mudado muito desde o golpe e o período em que boa parte dela apoiou tácita ou incontestemente um governo autoritário e ilegítimo, se colocando muitas vezes como seus principais porta-vozes diante da "opinião pública". Nossa mídia é claramente golpista, antidemocrática, elitista e, muitas vezes, facista. Contudo, procura recobrir estes posicionamentos sob o manto da legalidade e da moralidade e na tentativa de contrução de uma memória para si e para a "opinião pública" que silencia a sua participação, apoio e anuência não só ao golpe, mas ao próprio regime, dos quais foi uma das condições de possibilidade para que viesse a ocorrer como ocorreram, sem maiores resistências por parte da sociedade civil e da "opinião pública". É neste sentido, que constroem uma memória claramente seletiva sobre o Golpe e a Ditadura, a qual nomeiam apenas de militar, como forma sub-repitícia de apagarem os rastros de sua participação em todo o processo.
          Assim, é imperioso repensar o papel das entidades civis, em especial da mídia, mas não só ela, no processo que levou a emergência e consolidação de uma ditadura civil-militar em nosso país. E uma das formas de se fazer isto é justamente avaliando a construção de nossa memória atual sobre aquele período e como cada um destes sujeitos se ver ou se quer ai representado. Como afirma o historiador Daniel Aarão Reis "não, não se trata de um equívoco a ser 'esclarecido', mas de desvendar uma interessada memória e suas bases de sustentação. [Pois], são interessadas na memória atual as lideranças e entidades civis que apoiaram a ditaduras [grupos midiáticos, CNBB, OAB, a maioria dos partidos políticos, lideranças empresariais, etc.]. Se ela foi 'apenas' militar, todas elas, automaticamente e sub-repitíciamente, passam para o campo das oposições. Desde sempre. Desaparecem do radar os civis que se beneficiaram do regime ditatorial. Os que financiaram a máquina repressiva. Os que celebraram os atos de exceção. O mesmo se pode dizer dos expressivos segmentos sociais que em algum momento apoiaram - direta ou indiretamente - a ditadura". (REIS, Daniel Aarão. RHBN, Nº 83, 2012, p. 34-5).
            É este tipo de exercício de pensamento que constante e diuturnamente tem de ser feito, tanto por intelectuais quanto pelos demais membros da sociedade civil, mesmo que isto custe cortar na própria pele. Pois, nossa democracia - como em toda a América Latina - é ainda bastante frágil e incipiente, do qual o exemplo mais recente do Paraguai é apenas um, dos muitos indícios, que ela nunca deixou de estar sob ameaça, em especial daqueles que se cobrem do discurso da legalidade, da moralidade, da defesa da liberdade de imprensa confundida como liberdade de expressão, da defesa das instituições, etc. Nesta disputa, neste conflito ainda aceso como brasa nos monturos de nossa história mais recente, muitas vezes prestes a incendiar todo o resto - como em 2005, com a emergência do, posteriormente nomeado, "mensalão", um tentativa de golpe a paraguaia -, em muito me incomoda o silêncio de boa parte dos historiadores. Não só o seu silêncio, muitas vezes conivente, conveniente e complacente, mas também o posicionamento político dos mesmos frente a estas questões, se esquivando de atuar e agir em nome de um apartidarismo anêmico e sem sentido que pouco contribui para o melhoramento de nossa sociedade e para a consolidação de nossa democracia.
          Termino este texto com mais uma citação do historiador Daniel Aarão Reis, que a meu ver expressa a luta a ser travada, sempre em nome da democracia e de uma sociedade mais justa e daquilo que Paul Ricoeur chama de uma "justa memória": "A história atual está saturada de memória. Seletiva e conveniente, como quase toda memória. No exercício desta, absolve-se a sociedade de qualquer tipo de participação neste triste - e sinistro - processo. Apagam-se as pontes existentes entre esta ditadura e o passado próximo e distante, assim como os desdobramentos dela na atual democracia, emblematicamente traduzidos na recente decisão do Supremo Tribunal Federal impedindo a revisão da Lei da Anistia. Varridos para debaixo do tapete os fundamentos sociais e históricos da construção da ditadura. Enquanto tudo isso prevalecer, serão escassas as chances de a história deixar de ser uma simples refém da memória, e mais escassas ainda as possibilidades de compreensão das complexas relações entre sociedade e ditadura". (Idem, p. 35).