sábado, 8 de junho de 2013

Impressões de um professor/pesquisador de História sobre a Educação brasileira.



Impressões de um professor/pesquisador de História sobre a Educação brasileira.



Wagner Geminiano dos Santos

Resumo: Este ensaio busca pensar aquilo que se convencionou chamar de educação brasileira a partir do estabelecimento de algumas questões que julgo estruturais e que constituem este campo do saber, no cruzamento com outras questões mais conjunturais e pontuais que permeiam e constituem a educação em nosso país. Todas estas questões são tomadas e pensadas aqui a partir das minhas experiências e impressões enquanto docente. É neste sentido que procurei preservar no texto um caráter puramente ensaístico e de experimentação e exercício de pensamento, sem maiores pretensões científicas. Portanto, ao longo de sua construção, dispensei o uso de citações e referências documentais ou bibliográficas. No entanto, isto não impediu que sua escrita estivesse atravessada por inúmeros pensamentos e autores que o leitor mais atento logo identificará. E, por isso mesmo ele não é fruto apenas de meu esforço intelectual individual, mas é resultado da relação com inúmeras vozes e discursos, aos quais busquei deixar no anonimato, na tentativa de construção de uma espécie de memorial daquilo que entendo como sendo a educação brasileira no cruzamento de minha formação como professor, historiador e cidadão.

Palavras-chave: Educação brasileira, universalização, professor, escola, discente.


Gostaria, neste texto, de pensar e discutir alguns dos aspectos que julgo problemáticos naquilo que se sensocomunizou chamar de “Educação brasileira”, em especial no seu nível básico, hoje chamado de Ensino Fundamental. Tentarei fazer isto percorrendo o seguinte caminho: primeiro, abordarei aqueles aspectos mais gerais e estruturantes que formam, a meu ver, a espinha dorsal desta área do saber e das instituições a ela correlatas; em seguida procurarei pensar algumas dimensões mais conjunturais, que dizem respeito ao momento em que estamos vivendo, às práticas políticas, econômicas, sociais e culturais e às políticas públicas para educação atreladas ao processo educacional do país; por fim, de forma mais particular, tentarei pensar este processo a partir do ensino de história e da minha experiência docente em alguns municípios do interior de Pernambuco. Farei este esforço na tentativa de construção de uma espécie de memorial daquilo que entendo como sendo a educação brasileira no cruzamento de minha formação como professor, historiador e cidadão.
Para iniciar esta discussão, quero problematizar um enunciado que reverbera e ressoa praticamente em todo o corpo social de nosso país e que parece contribuir substantivamente para a imagem profundamente negativa que os profissionais da educação têm no Brasil. É o enunciado que coloca o processo educativo como missão, como sacerdócio e o professor como aquele que fez os votos e abraçou a causa – jesuítica, por sinal -, antes de tudo por amor e compromisso de fé do que por qualquer outra coisa – muito menos dinheiro, na forma de bons salários, claro; pecado mortal da profissão. Neste sentido, ao longo dos anos, fomos alçados a condição de mártires, de redentores, de salvadores da pátria e construtores da nação – talvez por isso se explique o sucesso algumas utopias, ou melhor, de alguns discursos idealistas, que mais parecem literatura de autoajuda, vide o sucesso de Augusto Cury entre os educadores, ou as duas coisas ao mesmo tempo, e porque não salvacionistas ainda presentes em nosso meio e a fazer grande sucesso e estardalhaço vendendo livros e mais livros. Este campo do saber talvez seja o único onde este tipo de discurso ainda produz efeitos de verdade sobre os pares, confluindo para uma larga produção científica pautada por estes enunciados.
Este enunciado que diz que o verdadeiro professor, o educador, na acepção ampla da palavra, é aquele que exerce a profissão por amor, por devoção a uma causa, por compromisso a uma missão. Ou seja, o professor antes de ser um profissional, alguém que trabalha para ser reconhecido e valorizado por suas práticas profissionais e intelectuais, seria um altruísta nato, alguém que se doa completamente, de corpo e espírito, a sua missão, pois é nesta que a priori já se encontra o reconhecimento e o valor do que fazem; enfim, o reconhecimento e o valor não estariam no professor e nas suas práticas profissionais cotidianas, mas já estariam definidos a priori na missão que escolheram defender, a princípio, de corpo e alma. Mas alma, espírito e intelecto do que corpo, pois neste discurso o professor parece não ter corpo – portanto, não precisa comer, vestir, se divertir, descansar, neste sentido não necessita de bons salários, de férias, de descanso, podendo trabalhar diuturnamente em sua missão –, quando muito ele aparece apenas como ferramenta para a realização de sua missão; corpo assexuado, como o dos anjos, a proteger a humanidade em nós ou a tentar, cristamente, construir a humanidade em nós. Corpo macerados por uma árdua jornada de trabalho – três expedientes, muitas vezes –, mas sempre resignado, pois expiando e remindo não só os seus pecados, mas, sobretudo, os pecados do mundo da sociedade.
O trabalho do professor, assim como no discurso cristão da culpabilização do homem pela queda, serviria para expiar o pecado da ignorância que deixou o homem em queda, seria o meio para se conseguir alcançar a salvação da nação, do todo social elevando-a aos píncaros da civilização e do progresso social e humano. O Professor, este ser transcendental, um misto de Cristo e anjo de luz decaído dos tempos pós-modernos, assexuado, quase sem corpo, seria o redentor de nossa sociedade, de nosso tempo. Daí o discurso que diz que a educação é o único caminho e solução para a nossa sociedade, discurso este profundamente repetido e alardeado aos quatro ventos em nosso país pelos diferentes setores de nossa sociedade numa reedição pós-moderna da passagem bíblica “eu sou o caminho, a verdade e a vida”.
Deste enunciado decorre, a meu ver, outro problema gravíssimo de nosso processo educativo, qual seja: o discurso religioso e cristão que se encontra profundamente arraigado e constituindo ainda as bases das práticas educacionais da maioria de nossos professores e professoras – façamos aqui uma distinção de gênero, pois o professor além de ter corpo, ele é investido de um gênero que interfere consideravelmente nas suas práticas educativas e, sobretudo, na educação básica de nosso país, onde a maioria do quadro docente é composta por mulheres, mas trataremos disto mais adiante -, apesar de nosso Estado se dizer laico e propor também uma educação assentada nestas características e preceitos.
Discurso cristão este que norteia em grande medida as concepções salvacionistas que permeiam boa parte das obras que buscam discutir a educação em nosso país. Num Estado que se quer ou que se diz laico e que deveria, portanto, fazer da educação e do processo educativo um meio para realizar este fim, isto parece não acontecer. Pois, cada dia mais as práticas educativas de boa parte dos professores se encontram cristianizadas e prontas a cristianizar, a doutrinar, fazendo do processo educativo algo muito parecido com uma prática de catequização. Isto se explicita, principalmente, quando o docente quer impor certa verdade aos seus “discípulos” e estes o contestam, reagem contra sua assertiva. Diante de tal recusa, a reação da maioria dos docentes caminha, quase sempre, para a pregação culpabilizadora, para o discurso religioso moralizante utilizado como arma educativa e disciplinadora diante do antigo discípulo transformado em herege.
Mas, me tranqüilizaria muito se o efeito deste discurso fosse apenas este – talvez o mais banal deles. No entanto, as coisas tendem a ser muito piores, descambando, na maioria das vezes, para o preconceito, para posturas, conservadoras e facistas de negação do outro. Ao longo da minha carreira docente – que ainda não é longa, diga-se de passagem – já presenciei cenas estarrecedoras, sendo legitimadas e justificadas por este discurso educativo-religioso.
Desde gestores que, para repreenderem seus alunos, diante de supostas atitudes incorretas dos mesmos, se utilizam e tomam o discurso moralista religioso como pedra abalizadora das atitudes dos discentes sejam elas quais forem e que sentido for, proferindo impropérios do tipo: “suas atitudes não fazem parte da criação divina, não faz parte das coisas de Deus, Ele condena tudo isso”, “Deus não criou seu filhos para a prostituição, para a marginalidade, para a homossexualidade, portanto, sejam bons alunos, respeitem o professor para ser alguém na vida, porque Deus condena que quer cair na marginalidade, e ele é nosso Pai salvador”.
Até professores que por puro despreparo e desconhecimento diante de temas candentes de nosso tempo como as drogas, as práticas homossexuais, homoeróticas, homo afetivas, a prostituição e outros mais se ancoram na muleta do moralismo religioso para se esquivarem do debate e se eximirem de tratar de tais assuntos. E quando o fazem, o fazem a partir do ângulo religioso, moralista e cristão, disseminado o preconceito e ódio ao diferente, ao outro. Neste sentido, já presenciei vários colegas professores argumentando que não tratam destes temas com seus alunos porque o consideram não natural, em especial em relação ao homossexualismo, pois o consideram não fazendo parte da criação divina. Já escutei de colegas até que por o considerarem não natural acreditavam que o homossexualismo seria uma doença e que deveria ser encarado como tal, com o objetivo de sanar a epidemia que assola a nossa sociedade nesses dias de pós-modernidade, ou seja, alguns de meus colegas, mesmo no papel de educadores, continuam vendo alguns temas e tratando-os como se estivessem fora da norma, fora da curva; enfim, como uma anormalidade dentro dos desígnios da criação. Pautam-se assim embasados não só por um discurso moralista religioso, mas também retomam um discurso médico já contestado e posto em cheque desde a década de 60 do século passado pela própria ciência médica.
No entanto, este discurso religioso-cristão que se imiscuiu e se insinua nas práticas educativas de boa parte dos docentes em nosso país (re)produz uma série de outros preconceitos e práticas conservadoras dentro de sala de aula, sobretudo em relação a outras religiões e culturas e contra quem as pratica, assim como contra quem não é praticante de nenhuma religião ou que não professe nenhuma fé. Neste sentido, assistimos quase que cotidianamente a justificação e a legitimação das práticas religiosas cristãs e seus dogmas – católicos ou protestantes – como verdadeiros, superiores, em especial em relação às religiões de origem afro.
Isto se torna mais enfático ainda em escolas que têm a disciplina de Religião sendo lecionada. Ao lecionarem esta disciplina a maioria dos professores ensinam muito mais os dogmas e práticas cristãs – católicas e/ou protestante –, fazendo proselitismo religioso – o que é vedado pela LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) – do que estabelecer uma discussão substancial e profunda sobre a própria idéia de religião, as múltiplas possibilidades de expressão da fé e do crível, a diversidade de possibilidades de abordagens e de visões de mundo propiciadas pelas diversas religiões. Neste sentido, esta disciplina é ensinada de forma a justificar e legitimar uma única religião possível e verdadeira, o Cristianismo, católico ou protestante, tendo em vista que nem os fundamentos teológicos e filosóficos básicos desta religião são discutidos, mas apenas apresentados como verdades absolutas e eternas. A disciplina de religião, onde ela é praticada, não serve para ensinar, mas para doutrinar os alunos nas práticas cristãs, com a escola se colocando desta maneira como uma extensão da Igreja, católica ou protestante, e as aulas aparecendo mais como uma extensão das aulas de catecismo ou das escolas dominicais. Fora disso só existiria erro, heresia, demonização.
Assim, a maioria de nossas escolas e seus docentes fica restrita a visão cristã de religião e ao Cristianismo como única religião praticável dentro daquilo que é aceito como normal, verdadeiro e absoluto. Propagandeada pela maioria dos professores como a única visão e crença possível, afirmando-se sobre as outras religiões a partir da demonização e negação das mesmas, de sua adjetivação como algo demoníaco, inferior, baixo, marginal. Não só estas outras religiões, mas também os seus praticantes e práticas seriam de outra esfera, a esfera do negativo, do mal, do desvio que atingiria aquele não só em espírito, mas no seu caráter, na sua moral, no seu ser. Reproduz-se assim uma cultura de intolerância e preconceito que se acentua ainda mais quando o que está em questão são as religiões e culturas de origem afro – apesar da Lei nº 10.639 que institui o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio com o objetivo de quebrar com estes preconceitos –, por motivos óbvios, aos quais a maiorias de nossas escolas e docentes fazem vista grossa e ouvidos surdos, pouco contribuindo para se romper com o preconceito por contra estas religiões e seus praticantes, reproduzindo-o ao invés de questioná-lo em suas raízes. Quando muito as nossas escolas fazem uma leitura destas religiões e de suas culturas e praticantes que beira o pitoresco, o folclórico, o estandardizado tratando-os como o exótico, o estranho, o fora da norma; o que só contribui para alimentar o preconceito e a exclusão.
Esta imagética que se criou em nosso país sobre os docentes e suas práticas parece ser ainda resquício da própria história da educação no país e de como ela foi praticada e exercida ao longo dos séculos. Entregue desde o início da colonização a Igreja e mais especificamente aos Jesuítas, nosso processo de educação das “massas” esteve, desta forma, quase sempre ligado aos ideais missionários e sacerdotais, de desprendimento das coisas do mundo, ligado ao ideal catequético-civilizador cristão que se impunha a partir do princípio da negação do outro e de suas práticas culturais – o índio, o africano e suas religiões e culturas. Mesmo depois das reformas pombalinas no século XVIII e as tentativas de expulsão dos jesuítas da América Portuguesa e a ascensão do Estado como garantidor de uma educação laica, o nosso processo educacional nunca se encontrou de um todo dissociado das práticas cristãs, pelo contrário, varou os séculos atravessado pelas mesmas, constituindo a educação brasileira claramente numa experiência fundada e pautada por práticas cristãs ortodoxas e conservadoras.
Tendências educacionais como a Escola Nova ao tentar se estabelecerem em nosso país tiveram de fazer este enfrentamento, ainda no início do século XX, às práticas educacionais de cunho cristão, não só no ensino, mas também na própria estrutura e concepção de educação no país. Enfrentamento este que ainda não conseguiu por fim a estas práticas, mas que vem convivendo com elas até nossos dias, mesmo depois do processo de redemocratização do país e a laicização do Estado brasileiro sob um viés constitucional e cidadão, outorgado pela Constituição de 1988. Mesmo assim, aquelas práticas continuam profundamente arraigadas no cotidiano escolar e atreladas às práticas docentes de boa parte de nossos professores, se constituindo, assim, como um sério problema de nosso sistema educacional que precisa ser enfrentado urgentemente, mas que infelizmente pouco se fala e quase ninguém se pronuncia ou se posiciona a respeito.
Um segundo aspecto do processo educacional brasileiro que precisa ser urgentemente considerado e pensado e que também pouco se faz ou se fala a respeito, é o processo de universalização do ensino no país, como ele foi iniciado, em que moldes e como ele vem sendo levado a efeito. Processo este iniciado do dia para a noite e sem considerar o contexto histórico, social, cultural, político e econômico de nosso país e que, por estes e outros motivos – que passarei a elencar de agora por diante – se constitui num dos maiores entraves para construir uma educação de qualidade no Brasil.
O nosso processo de universalização do ensino – fundamental e médio – é bastante tardio e ainda não se realizou por completo, principalmente em relação àquilo que se chama de ensino médio. No entanto, ele começou a ser levado a efeito nos últimos anos do período da Ditadura Militar e buscou consolidar-se a partir do processo de redemocratização do país já na década de 90 do século passado. Contudo, isto foi feito a toque de caixa, tentando romper com o atraso e com um processo secular de exclusão que caracterizavam nossa educação. Processo este feito quase sempre a partir de modelos importados dos EUA e da Europa e que foram transplantados para a nossa realidade sem ao menos se considerar nossas particularidades históricas, sociais, culturais, políticas e econômicas.
Desconsiderou-se completamente, por exemplo, o fato de que vinhamos de um processo educacional excludente, fundado numa educação de cunho religioso, cristão e autoritário e que se fazia direcionada quando muito às classes médias e as elites do país. O nosso processo civilizador, para utilizar uma expressão clara a Norbet Elias, quando muito atingia as nossas classes médias, civilizadas ainda muito mais dentro de ideias conservadores cristãos e católicos do que propriamente nos moldes laicos, burgueses e capitalistas que dispõe a ideia de meritocracia, competitividade e individualismo como pedras balizadoras e princípios básicos de uma educação laica.
Neste sentido, até a década de 70 e 80 do século passado, a educação, fosse ela pública ou privada, se constituía no direito de uma minoria. Onde, diante disso e apesar da parca estrutura, a superlotação das salas de aula não se constituía em um problema grave da educação do país, naquele período. Assim como o que chamamos hoje de indisciplina não se apresentava como percalço para docentes e gestores. Pois, a educação se fazia para uma parcela da sociedade que a via e percebia como um dos meios para manter, senão superdimensionar e consolidar, sua posição dentro desta sociedade. A educação era significada como elemento definidor e legitimador do status quo, sobretudo ao longo do período da Ditadura Militar. E em grande medida era assim que ela era vista e significada por aqueles que frequentavam os bancos escolares. Pois, uma educação pensada para reproduzir o modus vivendi e o habitus elitista e classe média em nosso país. Assim, o processo educacional brasileiro se conformava e se constituía correlato ao processo disciplinar e civilizador desta parcela de nossa sociedade e aos seus anseios políticos, sociais, econômicos e culturais.
Mas, este cenário se altera profundamente com o processo de universalização do ensino iniciado entre finais da década de 1970 e a década de 1980. A medida que praticamente do dia para a noite são jogados dentro das poucas escolas públicas construídas no país milhares e milhares de crianças e jovens, sem que ante tenha havido qualquer preparação por parte das entidades federativas (União, estados e municípios) para acolher tal demanda e a diversidade que ela ensejava em uma infraestrutura já deficitária. Era necessário ter havido a construção de novas escolas – mas não só isso –, a distribuição de livros e materiais didáticos, a contratação imediata de novos professores, assim como a capacitação dos mesmos e a qualificação dos que já faziam parte do quadro para atender este novo e variado público. Nada disso foi feito ou considerado a tempo. Contudo, a cada ano a demanda só fazia crescer e se multiplicar.
Decorrente disto, não houve um investimento imediato por parte do Estado na formação dos professores para que eles fossem “adaptados” a nova realidade das salas de aula criada por esta demanda crescente que bate a todo dia a porta das escolas em todo o país. Pessoas de classes sociais distintas daquelas a que as escolas públicas estavam acostumadas a atender, mas que se vê obrigada a fazer a inclusão, juntando-os, misturando-os com os antigos alunos classe média e das elites locais, fomentando na inclusão uma exclusão social cada vez mais gritante, exacerbando as distinções e diferenças sociais entre o filho do pobre e o estudante riquinho de classe média ou filho do mandatário ou do grande comerciante local. Incluir para excluir, para marcar a diferença – e isto se explicita em comportamentos que vão se tornando quase que naturais, como a preferência dos professores pelos filhos geralmente branquinhos, limpinhos, “educados” das famílias de classe média ou das elites em detrimento do olhar torto, reprovador diante do mestiço, do negrinho filho do pobre, geralmente empregado daquelas famílias que agora tinham de conviver no mesmo espaço e que ao menos legal e teoricamente tinham de ser acolhidos e tratados com isonomia.
É sob este signo que se inicia o processo de universalização do ensino no Brasil. Milhares de pessoas, passos, pernas e corpos diferentes, diversos, divergentes se dirigindo, dia após dia em maior número, às escolas. Fruto de realidades diversas, variadas, marginais com as quais a maioria dos professores e a própria escola não estava habituada ou acostumada a lidar. Como esta escola se torna um ambiente difícil, excludente para grande parte deste novo público também pouco acostumado com ela, com suas regras, com seu modus operandi, e isto se traduziu por muito tempo nos elevados índices de evasão, de desistência deste público em continuar num espaço em que eles pouco tinham espaço, a não ser como corpos deslocados.
Corpos estes constituídos em um modus vivendi diferente e diametralmente oposto àquele que a maioria dos professores estava acostumada a lidar. Corpos rebeldes, não educados, não civilizados no modo de vida burguês, capitalista ou até mesmo cristão-conservador, vindos de um caldo cultural ante e anti capitalista, como costuma dizer o antropólogo José Carlos Rodrigues. Corpos com os quais a maioria dos professores não sabe como trabalhar, não sabem o que fazer ou como proceder. Professores que até então eram pensados assexuadamente – as “tias”, estes seres assexuados, que nem famílias conseguiram constituir, a não ser àquela que abraçaram na sua missão, imagem esta a muito cristalizada sobre as professoras, tendo em vista que esta era até bem pouco tempo atrás uma profissão eminentemente feminina, em especial nas séries iniciais e no que hoje se chama de ensino fundamental – como pessoas compostas apenas de intelecto, se vêm diante de uma multiplicidade de corpos com a sexualidade a flor da pele, que se expressam pela violência dos gestos e das palavras. Fruto de uma visão de mundo, de uma cultura e de relações sociais forjadas na base da violência, da sexualidade aflorada e explicitada cotidianamente sem grandes pudores.
Afinal, os corpos que todos os dias adentram as salas de aula de nosso país, em especial das escolas públicas, forma talhados e trabalhados num espaço social onde a distinção do público e do privado ainda não se fizeram sentir como nos espaços de classe média e de elite. Espaços domésticos que condensam, muitas vezes, no mesmo ambiente o quarto, a sala, a cozinha, o banheiro, expressando desta forma uma medievalidade dos costumes ainda bastante presente nos dias atuais. Os alunos que batem a porta de nossas escolas estão, quase todos eles, acostumados a ver e a presenciar a violência entre os pais ou entre os parceiros de seus pais ou mães. Acostumados desde cedo a verem as práticas sexuais de seus pais ou responsáveis de forma explicita, escancarada, dada a falta de privacidade na maioria das moradias em que os mesmos habitam. Quando não com os pais, com os animais de estimação ou de criação, cães, gatos, porcos, caprinos, equinos, bovinos, asininos, com que muitas vezes se iniciam sexualmente, em especial os homens.
Conhecedores desde cedo das mazelas da violência física e psicológica, do encontro precoce com o sexo, com as drogas, com a violência doméstica. Marcados perla necessidade e pela busca diária por sobrevivência num mundo onde palavras como educação, meritocracia, civilização pouco parecem fazer sentido aos seus ouvidos. São geralmente estes corpos assim talhados que começamos a ter dentro de nossas escolas a partir do início do processo de universalização do ensino no país.
E como a maioria dos professores, senão todos, estava – e ainda estão – despreparados para “educa-los”, “civiliza-los” –  dificuldade esta que atribuo à rebeldia, à resistência a um dado modelo civilizador, a um dado habitus que querem lhe impor numa estratégia aculturante – tomam esta rebeldia, esta revolta como indício de uma indisciplina profunda e incorrigível, ou melhor, de uma falta de disciplina, de educação. E por isto passam a ser vistos quase como não humanos, tratados quase como animais, como bestas humanas destituídas de sua alma, de sua essência, daquilo que os tornariam humanos. Enfim, a escola e boa parte dos professores parecem querer negar e lhes extirpar àquilo que é mais humano naqueles corpos, como diria Nietzsche, o que lhes é humano, demasiado humano: a violência, o sexo, o desejo, a revolta, a resistência. Com esta postura, escola e professores, buscam, antes de tudo, se afirmarem como melhores, como superiores, pois supostamente pautados por valores civilizatórios, portanto ocupando outro estágio de, mais avançado, mais evoluído, no processo civilizador. Dai poderem justificar a sua boa consciência. A boa consciência daqueles que tentaram humanizar e civilizar aqueles que se recusam a sê-lo.
Diante de uma consciência tranquila, embalada pelo argumento de quem tudo fez e faz, diante de todas as dificuldades possíveis, para educar as “massas” incultas, tanto a Escola quanto a maioria dos profissionais a ela ligado pouco para ou nunca param para pensar e problematizar que o mundo que eles oferecem a este público é um mundo insignificante e sem sentido, destituído de qualquer capacidade mobilizadora para uma maioria que só conhece como realidade imediata a violência, a privação, os prazeres do sexo, o delírio oblíquo das drogas, a libertinagem de uma vida sem fronteiras, sem limites e sem um conjunto de regras muito claras, a não serem aquelas determinadas pela necessidade da sobrevivência diária, cotidiana. Justamente porque são vidas que vivem nas fronteiras, no limite da vida e da morte, da sobrevivência, da privação, da marginalidade, da exclusão. Daí sua rebeldia, sua revolta, sua “indisciplina”.
Indisciplina. É por este ângulo que a Escola e boa parte dos docentes, senão todos, enxerga e nomeiam o comportamento deste novo público que acorre todos os dias à sua porta. Pois, tomam o seu mundo, os seus critérios como abalizadores do outro. Neste sentido, a Escola os enxergam e os nomeiam pelo negativo, pela falta, como corpos e pessoas que precisam ser educados, disciplinados, civilizados, pois, supostamente, estas características lhes faltam. São pessoas mal educadas, indisciplinadas, rudes, ignorantes, torpes, fora da norma. Talvez, por isto, muitos professores, em especial àqueles a mais tempo na profissão e alguns novatos também, sejam saudosos dos métodos tradicionais de ensino, ou melhor, dos castigos e da palmatória como meio de educar e disciplinar o outro.
Não enxergam que se possível fosse retornar àqueles métodos, eles não funcionariam, não surtiriam os mesmos efeitos de poder e de verdade de outrora, pois o público e os corpos a que eles se destinariam são outros. Como dito anteriormente, temos agora em nossas escolas uma maioria de corpos talhados na e pela violência física e simbólica do dia-a-dia, e que, por isso mesmo, são rebeldes, resistentes ao castigo, ao disciplinamento, a punição. São corpos encarapaçados pelo tempo, pela constância da violência de onde nasceram e estão a crescer e a se constituir enquanto humanos. São, portanto, corpos bastante diferentes dos corpos classe média com os quais a maioria das escolas privadas de nosso tempo costumam trabalhar e que já fora num passado não muito distante o principal e majoritário público das escolas públicas.
Estes corpos classe média, são corpos com outros habitus, vindos de um mundo e constituídos por uma visão do mesmo, totalmente distinta dos deste novo público de massas. Talhados geralmente por uma forte moralidade religiosa cristã desde a infância; crescendo já marcados pelo signo do afastamento entre os corpos, contornados por reservas morais, físicas e psicológicas tanto em relação ao sexo quanto em relação à violência. Corpos para os quais o castigo e a punição funcionam como humilhação, como signo do fracasso em não conseguir governar os “excessos” do próprio corpo, enfim, como mecanismo disciplinador e contingencioso de práticas tidas como anormais utilizadas pelos pares quando o próprio indivíduo não consegue, por sí só, se governar. Significações estas que não ressoam sobre e entre este novo grupo, acostumado no seu cotidiano a lidar de forma bastante naturalizada com os castigos e as punições, que antes de serem vistos como tais, como práticas humilhantes, corretivas, disciplinares aparecem muito mais como práticas normais, naturais, parte integrante de suas vidas e realidades cotidianas.
Basta observar como estes corpos se comunicam, como tratam uns aos outros. Com tapas, socos, chutes, ponta pés, empurrões etc. E quando repreendidos por algum professor desavisado, saem com a máxima: “é só brincadeira, professor”; para perplexidade da maioria dos docentes. O paradoxo está justamente no fato de que os docentes, ou a maioria deles, ainda não se deu conta que a violência é uma linguagem, sobretudo, uma linguagem que está inscrita e inscreve a subjetividade destes e para estes corpos, ou melhor, a violência é a sua linguagem, a mais significante, a mais explicita e utilizada para sua expressão. Pois, foi nesta linguagem que eles foram talhados e educados e é por meio dela que se expressam de forma mais emblemática: nos gestos, nas relações e até mesmo nas palavras que usam para significa-la, todas elas carregadas de violência, de erotismo, de pulsões desejantes.
E diante desta linguagem a Escola enquanto instituição encontra-se totalmente perdida, desorientada e sem rumo. Isto porque o modelo que temos de escola ainda é aquele pensado pela modernidade e voltado para atender as necessidades e demandas daquilo que Michel Foucault chamou de sociedade disciplinar. Uma escola que ainda tem como modelo o exército e a prisão, na sua posição arquitetônica, e a fábrica e o hospital, no seu modelo gerencial. Este modelo já não atende mais as demandas de nosso tempo, de uma sociedade pós-disciplinar, pós-industrial, pós-moderna para muitos.
Temos ainda uma escola pensada arquitetonicamente como prisão, com portões, grades, cadeados, composta de salas quadriculares dando, geralmente, ou para um corredor ou para um grande salão central de onde se pode, por seus corredores, passar em revista todas as salas, de onde todas elas podem ser observadas ao mesmo tempo. Uma escola ainda pensada como fábrica, com horários a serem rigidamente cumpridos, regularmente observados ao longo de um árduo ano de trabalho – a educação dos bancos escolares é apresentada com a mesma obrigatoriedade do trabalho – com feriados, folgas, recessos e férias predeterminados por gestores, que mais parecem patrões – dada a cobrança por resultados, metas, objetivos, etc. –, com toques de sirene que determinam o horário de entrar e sair, de recrear, de ter o intervalo antes da volta do trabalho – afinal, o estudante também é visto como um laborador intelectual em desenvolvimento.
Uma escola que tem de seguir todo um planejamento gerencial, imposto de cima para baixo, segundo uma hierarquia previamente definida. Uma escola que é regida como hospital a partir da prática da catalogação daqueles que fazem parte do seu corpo, da sua separação, da sua seriação e segmentação pelo mecanismo da ficha, das anotações, pelo exame contínuo e regular das atividades docentes. Uma escola ainda pensada como caserna, como exército, com seus alunos rigidamente sentados, enfileirados lado a lado, do menor para o maior, por horas a fio, diante da lousa e do mestre.
É este tipo de funcionamento de nossas escolas que encontra uma resistência tamanha nos nossos dias. Este é cada vez mais um modelo falido, que a cada dia só faz comprovar sua falência diante da resistência e inquietude dos corpos que se negam a serem disciplinados e esquadrinhados dentro dos muros desta prisão-escola que mais parece um Frankenstein paralítico, postado diante de nosso tempo e das práticas sociais, culturais e políticas dele constitutivos, murmurando palavras sem sentido.
São escolas inadequadas do ponto de vista de sua estrutura física, que não oferecem salas de aula suficientes e adequadas para atender a demanda deste novo público e para estes corpos outros. Escola que assim como os nossos presídios encontram-se abarrotadas, superlotadas aumentando ainda mais o processo de produção da “delinquência”, da “indisciplina” ou aquelas práticas que só conseguimos nomear com estes termos, por até mesmo no campo da linguagem ainda estarmos limitados por uma conceituação e um vocabulário educacional, sobretudo no cotidiano escolar, que há muito não consegue mais ver e dizer o nosso tempo. Um léxico de milhares de expressões, reproduzido e multiplicado aos quatro ventos, mas que nada diz sobre nossa condição, que não a significa mais, que parece expressar tão somente o silêncio e a impotência de nossas palavras e a surdez de nossos ouvidos diante de falas, práticas e ruídos que ecoam de dentro das salas de aula e que a Escola ainda fundada em linguagem moribunda não consegue sequer escutar, quanto mais compreender e dialogar com ela. Tem sobre este público e seu murmúrio apenas uma linguagem e um discurso insignificante que a cada dia que passa vai ficando mais mudo, oblíquo, afônico.
Temos ainda uma instituição escolar fundada em práticas e procedimentos disciplinares que só constituem e enquadram aquilo que está na norma ou que é visto enquanto tal. Uma Escola, em sua maior parte, incapaz de lidar com o diferente e a diferença que a todo dia bate sua porta. Incapaz de compreender a diversidade imanente ao seu público, muitas vezes pensado por ela como homogêneo. Escola que, depois de iniciado o processo de universalização do ensino, se quer inclusiva, mas que cada vez mais opera por exclusão. Como diz Alfredo Veiga-Neto, é uma escola que inclui para excluir, que inclui para marcar claramente os lugares do normal e do anormal, do educado e do não educado, do incluído por ser igual e do excluído por sua irredutível diferença. Uma escola que ainda trabalha para reduzir homogeneizar comportamentos, para educar mentes e corpos dentro de um modelo civilizador pensado como único e verdadeiro, no qual a diferença só encontra sentido como exceção e confirmação a regra civilizatória e disciplinar. Como elemento justificador e legitimador deste processo educacional visto e imposto como necessário para a constituição da ordem, do progresso, do desenvolvimento do indivíduo em particular e da sociedade no geral. Indivíduo quase sempre pensado como peça do social, que deve ter as arestas de suas diferenças aparadas para se encaixar harmoniosamente no todo do corpo social.
Uma escola totalmente despreparada para os conflitos e tensões que são inerentes ao corpo social. Que não enxerga outra saída para ele que não seja a punição, a interdição. Isto porque se encontra cada vez mais isolada do corpo social. Isolamento político, social, cultural. Sua voz, seu discurso não reverberam mais na sociedade, não produz mais os efeitos de verdade que a modernidade requeria da mesma. Isto parece ocorrer em grande medida porque modernamente a Escola ainda se pensa como lugar privilegiado de reprodução e circulação do saber em nossa sociedade. Desconhecendo ou tornando-se indiferentes aos inúmeros outros lugares de produção e circulação do sabe em nosso tempo. Como, por exemplo, os conglomerados midiáticos e as diferentes mídias operadas por eles (TV, jornais, jogos eletrônicos e, sobretudo, a internet), a publicidade, o marketing, as religiões e as igrejas, os círculos de amizade, a comunidade, a rua etc. Lugares nos quais o saber é não só aprendido, reproduzido, mas, sobretudo, construído, praticado, experimentado diferentemente do que ocorre na maioria das escolas de nosso país, onde o saber é muito mais reproduzido do que socialmente construído em meio às demandas culturais, políticas e econômicas do lugar onde a mesma está inserida e onde seu público habita, mora, vive.
Uma escola que desconhece quase que por completo a comunidade em que está inserida e que quando a conhece pouco faz para entrar em contato com ela. Se resguardando muitas vezes no pseudo argumento e na falácia de que a mesma está e sempre esteve de portas abertas para a comunidade e que esta é quem não procura àquela. Quando muito a Escola entra em contato com a comunidade nos encontros de pais e mestres e nos plantões pedagógicos, que funcionam muito mais como instrumentos de desencargo de consciência da própria Escola, para ela poder dizer tranquilamente “fiz minha parte”, do que como uma prática afetiva para estabelecer um contato mais profícuo e duradouro com a comunidade.
Encontros estes, quase todos eles, esvaziados pelos pais e pelos próprios alunos que observam nestes momentos apenas eventos nos quais os professores e a equipe gestora encontram para mais uma vez reprovar o comportamento dos seus filhos e, por consequência, a sua atuação enquanto pais – pais e mães que o são a partir de outros modelos, de outros modus vivendi – ou responsáveis por aqueles. Momentos em que a Escola faz a sua sessão de terapia e desencargo de consciência procurando afirmar para si mesma que está a fazer alguma coisa, que está cumprindo com o seu papel na tentativa de educar os filhos dos outros de e para a nossa sociedade.
A Escola enquanto instituição precisa não só estar com as portas abertas à espera da comunidade, mas precisa antes de tudo começar a se relacionar com ela, se inserir em seu meio para conhecer as suas demandas, os seus anseios, as suas necessidades. Para entender a sua linguagem, que parece desconhecer por completo. A Escola precisa parar de fazer de conta e reconhecer sua atual impotência e inoperância diante da comunidade em partícula e da sociedade no geral. É preciso que ela saia de dentro de seus muros e vá conhecer a sociedade e a comunidade em que está inserida. Mas que vá desarmada, sem se o direito daquele que detêm o conhecimento autorizado e, portanto, que se insinua como superior diante do mundo e das coisas, diante do outro. A escola tem de perceber e, sobretudo, admitir que não conhece a comunidade e que urge conhece-la para saber de sua demandas, de sua necessidades, para a partir daí traçar estratégias para uma relação mais próxima, menos impositiva e mais democrática e multifacetada. Além do mais, a Escola precisa se fazer reconhecer, construir para si novos significados, o que não pode mais fazer sozinha ou apenas a partir de instancias superiores; mas, sim em relação com a sociedade na qual se insere. A Escola precisa ser investida de novos significados e sentidos construídos em conjunto e partilhados por ela e pela comunidade em particular e pela sociedade em geral.
Mais do que nunca parece necessário construir uma Escola significante socialmente. Porque a que temos hoje está vazia de sentido e não cumpre com o processo de universalização a que se destina e muito menos com o projeto de educação a que se arvorou desde o início da modernidade. E para tanto é preciso que a Escola entenda de uma vez por todas que ela não é mais o locus privilegiado da sensocomunização do saber em nossa sociedade. A nossa sociedade, hoje, independe da Escola para conhecer. E isto explicita claramente o esvaziamento de sentido do referencial significante sobre o qual ela esteve pautada. Se a sociedade não precisa mais da escola para conhecer, esta perde totalmente o seu sentido e a função social construída para ela ao longo da modernidade. Ainda por cima, o conhecimento que ela oferece parte em grande medida de um ideal meritocrático que só faz plenamente sentido dentro do mundo pequeno burguês das classes médias urbanas. Ou seja, até mesmo este último bastião de significado ao qual a Escola ainda busca se apegar não ressoa mais entre o principal público que ela atende atualmente – em especial a escola pública – que são as classes populares, os estratos mais humildes de nossa sociedade. No entanto, mesmo diante deste quadro, ela procura se manter enquanto instituição à medida que se pauta na legitimidade de fazer circular um saber institucionalizado e autorizado, por mais que necessário e indispensável ao mundo pequeno burguês de nossas classes médias.
Para a maioria do atual público que frequenta os bancos escolares, em especial de nossas escolas públicas, tal saber oficial, meritocrático parece não constituir sentido prático ou teórico para às suas vidas, para o seu cotidiano. Este público ainda frequenta os bancos escolares muito mais por questões outras. Na maioria de nossas escolas públicas de nosso país isto parece acontecer muito mais por conta que a Escola passou a representar a sobrevivência, literalmente falando, para boa parcela deste público, carente das mínimas condições básicas de sobrevivência no seu dia-a-dia, sejam aqueles que frequentam diretamente à escola, os alunos, seja aqueles que são seus responsáveis, os pais e familiares, para quem a escola parece representar minimamente a segurança alimentar se seus filhos, pelo menos no turno em que eles estudam.
Ou seja, boa parte deste público frequenta as escolas de nosso país, primeiro porque o Bolsa Família – um dos principais programas assistenciais e de distribuição de renda do Governo Federal – está, a princípio, atrelado a frequência dos alunos à escola. Portanto, a ida dos filhos à escola implica diretamente no recebimento deste benefício, por mais que o controle de tal frequência não seja tão rígido quanto deveria ser, mas ao menos garante a permanência de boa parte dos alunos nas escolas, assim como a necessidade regular de suas matrículas ano a ano, sob pena do benefício ser suspenso. Como boa parte das famílias humildes do país tem no Bolsa Família um fundamental complemento de sua renda mensal, senão toda ela em alguns casos, a ida para a escola de filhos, netos, sobrinhos etc. torna-se quase que obrigatória, pois implica diretamente na sobrevivência diária dessas famílias.
Além disto, outros programas federais como o PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – foram atrelados e condicionados a permanência e frequentação deste público de crianças e adolescentes à escola, em especial a partir da segunda metade da década de 1990. Se formos fazer um estudo comparativo do período anterior a estes projeto com o período que sucede sua implantação, veremos como os índices de evasão e desistência vêm caindo gradativamente, ano após ano. Mas, menos por conta de um crescente entendimento da importância por e para estas pessoas a quem tais programas se destinas, mas mais pelas obrigações que eles implicam e a necessidade que geram. Pois, ao que me parece, antes deles a maioria dos pais e responsáveis preferiam deixar seus filhos e tutelados em casa, ajudando nas atividades laborativas de sua sobrevivência cotidiana, do que manda-los para a escola.
Segundo, a frequência e a frequentação dos mesmos se dão também por conta da própria merenda oferecida nas escolas, que em grande medida se apresenta como um complemento das parcas refeições diárias que estas pessoas têm acesso. Mais uma vez, uma questão de sobrevivência, de pragmatismo. Terceiro, atrelado a estes dois motivos anteriores, parece se encontrar o fato de que a maioria dos pais e responsáveis enxergam na escola uma possibilidade e um lugar onde seus filhos irão encontrar aquilo que eles não conseguem fornecer e encontrar em casa: comida, alimentação, enfim, uma relativa segurança em meio ao “caos” em que vivem. Quarto, o interesse primeiro da maioria dos alunos em frequentar a escola parece estar no fato de que neste espaço encontram um ambiente propício para o divertimento, para a construção de pertencimentos que eles próprios constituem as expensas das regras de convivência estabelecidas pela instituição. Neste sentido, a escola é vista muito mais como um lugar aonde se vai para encontrar os amigos, os colegas: para brincar, se descontrair, se divertir sem ser interrompido pela necessidade do trabalho cotidiano junto aos pais para o sustento da casa e da família. A escola se torna um espaço privilegiado também para o aprendizado do namoro, da azaração, da iniciação sexual, para por em prática aquilo que lhe é explicitado naturalmente no seu dia-a-dia.
Quinto, por a escola se pensar como família ou como uma extensão da família, nuclear e burguesa, a maioria dos pais a toma não como escola, mas como a própria família que deve não só contribuir para formar o cidadão, mas também arcar com as demais premissas e prerrogativas do ideal de família nuclear burguesa: cuidadora, mantenedora, educadora, acolhedora. E isto se agrava sobremaneira no nosso tempo, onde o próprio conceito de família nuclear e burguesa não diz mais quase nada sobre nossa realidade, sobretudo para este público que frequenta as escolas públicas. Público para o qual o conceito de família é totalmente ou são totalmente outros, quase tão múltiplos quanto o número de alunos que se dirigem a escola.
Famílias constituídas, muitas vezes, apenas pela mãe ou pela avó ou a tia ou o parente distante. Mães que não vivem mais com os pais biológicos de seus filhos ou que se quer os conhecem, mas que agora tem um padrasto ou vice-e-versa. Ou a mãe que desistiu de apanhar dos muitos homens que passou por sua vida e agora vive uma relação homo afetiva com parceira fixa ou relações homoeróticas com parceiras variadas. Ou o pai que mora com a mulher “oficial” e a amante dentro da mesma casa, juntando também os filhos de ambas. Famílias múltiplas, enfim. E diante delas a Escola encontra-se sem rumo, sem prumo, nomeando-as com o único vocabulário que lhe resta e sabe manejar com precisão: famílias desestruturadas, anômalas, anormais, pois nenhuma se encaixa no seu modelo de família, no seu ideal burguês de família nuclear.
Até mesmo os professores, mais próximos desta realidade, se tornam impotentes diante desta realidade, pois frutos de outra geração na qual a autoridade do pai ainda se fazia sentir, mas já em transição para estes novos tempos se sentem perdidos entre um tempo e outro, entre a compreensão e a recusa, entre a condescendência e a punição, entre o agir e o omitir-se. Paradoxo da profissão. Na falta do que fazer, continuar fazendo o mesmo, ou seja, nada.
O despreparo ou o vazio da Escola diante de nosso tempo é tão patente que ela pouco sabe o que fazer diante o avanço das novas tecnologias da informação, da comunicação e da eletrônica. Equipamentos cada vez mais divulgados, difundidos e utilizados pelos alunos, mas que a Escola não sabe não sabe como aproveitar todo o seu potencial para a produção e circulação de conhecimento. E como não sabe o que fazer, proíbe. Proíbe ou tentam proibir o uso de celulares, aparelhos eletrônicos e congêneres no momento das aulas, desperdiçando assim o potencial e as possibilidades abertas por estas tecnologias para a aprendizagem e a produção do conhecimento.
A escola não consegue compreender também aquilo que Michel Mafesoli chama de processo de tribalização da sociedade, no qual os elementos de identificação societais – modo de vestir, locais de frequentação, gosto musical, artistas e esportes preferidos etc. – passam a definir as relações grupais, constituindo tribos que se relacionam muito mais pela sinergia dos gostos, dos gestos, atitudes e desejos semelhantes do que por uma clara distinção social marcada por critérios econômicos ou puramente classistas. Assim, o uso do boné, de determinadas vestimentas, como shorts curtos, blusas coladas se tornam símbolos de identificação e pertencimento a um grupo, a uma tribo. Assim como aquilo que se escuta, que se faz e que se fala, ou seja, as próprias atitudes e gestos definem esta pertença a um grupo – periguetes, roqueiros, rappers, skatistas, pagodeiros, boizinhos (as), surfistas, swingueiros, emos, punks, góticos e inúmeros outros que surgem a cada dia – ou a alguns grupos ao mesmo tempo. Tribos estas que vem se multiplicando ao sabor dos ventos e na velocidade dos acontecimentos que caracterizam nosso tempo.
Diante desta diversidade de tribos, nossas escolas ainda trabalham pautadas pela homogeneização pelo uniforme, que tenta, em vão, substituir as identidades móveis, com as quais não sabe lidar, dialogar, pela identidade fixa do estudante fardado, numa tentativa de reduzir o múltiplo e o diverso ao único, ao mesmo. Reduzindo a diferença à identidade; identidade esta que não foi construída numa relação de partilhamento simbólico, de sentimentos de pertença e identificação, mas impostas de cima para baixo, como resultado de uma relação de dominação e sua aculturação por aqueles que frequentam os bancos escolares.
Assim, quando a escola diz que o aluno não pode usar boné, que não pode usar a bermuda ou a blusa que usa cotidianamente é muito menos uma regra que se impõe do que a quebra, muitas vezes dolorosa, com o processo de construção das identidades sociais destes alunos. Agravando e tornando, desta maneira, muito mais confuso e conflituoso o processo de construção das identidades sociais destes sujeitos. Alimentando, assim, sua rebeldia, sua revolta, sua “indisciplina” diante da Escola e promovendo ainda mais a antipatia destes sujeitos por esta instituição que passa a significar para eles muito mais um espaço de cerceamento, do tolhimento de suas invenções enquanto sujeitos sociais, do que uma possibilitadora deste processo.
Gostaria agora de passar a tratar de assuntos mais pontuais em relação à educação brasileira. Mas, que de uma forma ou de outra não deixam de estar relacionados às questões já tratadas até aqui, na primeira parte deste texto. O primeiro ponto que gostaria de abordar é o financiamento público da educação nos níveis fundamental e médio em nosso país – e aqui tratarei apenas dos casos da escola pública e somente quando necessário reportar-me-ei às escolas privadas – e as responsabilidades e competências dos entes federados diante dela.
Ao longo dos últimos anos têm se estabelecido uma discussão candente em torno da necessidade de se aumentar o valor destinado pela União para ser aplicado na educação em nosso país. A maioria dos especialistas, das centrais sindicais e dos movimentos sociais ligados à educação é taxativa em apontar para a necessidade de uma elevação do repasse dos atuais 5% para 10% do nosso Produto Interno Bruto – PIB, sob o argumento de que só com este montante de investimentos poderemos ter realmente uma educação pública, gratuita e de qualidade em nosso país.  Esta elevação é apontada como a última formula mágica para se resolver, de uma vez por todas, todos os problemas da educação no Brasil. Quantas fórmulas mágicas já forma inoculadas em nosso sistema educacional!!! E agora mais uma.
No entanto, não vejo esta elevação de valores com tão bons olhos, principalmente se tentarmos vislumbrar que, por si só, ela não resolverá os problemas de nosso sistema educacional como um todo. Não porque seja contra o aumento dos repasses, não. Mas, porque entendo que, antes de serem implementados, outros impasses têm de ser resolvidos para que o dinheiro destinado cumpra realmente com os objetivos de sua destinação e chegue onde realmente necessita chegar. Digo isto, pois, acredito que o principal problema da educação pública no Brasil não é basicamente de falta de dinheiro, este já foi um dia, mas sim o gerenciamento e aplicação do mesmo, principalmente por parte dos gestores municipais e estaduais, em especial pelos primeiros.
É certo que o sistema de educação pública no Brasil padece de um grave problema de infra-estrutura (falta de escolas, escolas em condições precárias, salas de aulas mal projetadas e abarrotadas, falta de bibliotecas e espaços adequados para o uso de novas tecnologias e recursos didáticos, a falta dos próprios meios áudios visuais etc., etc.) que só podem ser equacionados com o aumento do investimento na educação. Mas, a meu ver estes problemas encontram seu principal entrave não na quantidade de dinheiro que é repassado para o investimento direto em educação – sobretudo nos últimos oito anos, período no qual tais recursos vêm aumentando ano a ano – mas, no seu mau gerenciamento e desvio por parte, sobremaneira, de gestores municipais e estaduais.
Os mecanismos de distribuição dos investimentos em educação criados pelo Governo Federal, sobretudo a Lei do FUNDEB – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação – têm possibilitado uma distribuição mais igualitária e equitativa dos recursos federais destinados a estados e municípios. No entanto, estes recursos que são enviados para serem aplicados prioritária e exclusivamente na educação, quando chegam a seu destino, em especial na maioria dos municípios, são desviados de seus objetivos e se esvaem por vários ralos: em especial o da corrupção e o da apropriação indébita de dinheiro público para fins particulares. O dinheiro do FUNDEB é uma verdadeira mina de ouro para um sem número de prefeitos corruptos e inescrupulosos. E isto, infelizmente, é um problema presente em praticamente todos os municípios brasileiros. Tais práticas têm se tornado um habitus entre aqueles que administram tais municípios, assim como também permeia o imaginário daqueles que pretendem um cargo público de gestão. A corrupção tem se tornado um elemento definidor da cultura política brasileira e vem sendo subjetivada com certa naturalidade por boa parte da sociedade. E isto parece se agravar sobremaneira nas menores unidades federativas da nação, os municípios; principalmente nos menores onde os meios de denúncia e combate a tais práticas são parcos ou inexistentes.
Fruto de uma dificuldade da própria sociedade brasileira, nas suas várias nuances e matizes, em separar o público do privado, em estabelecer uma dissociação clara, nítida entre a esfera do público – sobretudo, o público entendido como o Estado – e a esfera privada; suprimindo assim a distância entre os interesses particulares, familiares ou de pequenos grupos dos interesses da coletividade, num movimento em que os interesses daqueles são legitimados e justificados como sendo os interesses de todos. Desta forma, o Estado brasileiro nas suas várias esferas e entre suas entidades federadas não conseguiu, ainda, cumprir aquela que segundo Philippe Àries e Roger Chartier se configura como uma das principais características do mundo moderno, que é a construção do Estado como principal agente e símbolo, por excelência, da esfera pública. No Brasil, este parece estar cada dia mais contaminado por interesses privados e/ou privatistas.
Isto se deve ao fato de que no Brasil a configuração e a construção do Estado moderno tomou características e rumos diversos daqueles experimentados pela maioria dos países Europeus e pelos EUA, por exemplo. A construção do Estado Nacional, moderno, no Brasil, se deu, desde o final do período colonial, mediante a imbricação com interesses particulares, ora de determinadas famílias, ora de certas oligarquias regionais, ora das elites como um todo, ora do “mercado” e quase nunca como um instrumento ou instituição a serviço da coletividade ou de seus interesses maiores. Desta forma, a sobreposição dos interesses particulares aos interesses públicos, desde o início da colonização da América Portuguesa, sempre se fizeram presentes como uma marca da história da administração deste território que hoje chamamos de Brasil. E isto só tem se agravado ao longo do tempo, estabelecendo-se e petrificando-se em uma cultura política que adoça o apadrinhamento, o clientelismo e o privilégio como prática cotidiana e a corrupção, a malversação do dinheiro público e a apropriação indébita como meios de garantir a sua perpetuação enquanto habitus característico de nossa sociedade e de suas práticas políticas, em especial no trato com a coisa pública.
Nos dias de hoje, estas praticas tornam-se mais enfáticas e problemáticas ainda nos pequenos municípios do país. Onde a maioria dos prefeitos desconhece ou são indiferentes a qualquer princípio de ordenamento ou separação da esfera pública da esfera privada, sobretudo no trato dos bens públicos e dos recursos financeiros por ele geridos. Na maioria dos casos, os bens públicos são tratados e vistos como coisa de ninguém e, portanto, a meio passo de serem usados como uma extensão do patrimônio privado do gestor de plantão. Destino semelhante encontra boa parte dos recursos financeiros, prontamente endereçados, das mais variadas formas, aos bolsos do prefeito e de uma meia dúzia de apaniguados que se servem do mesmo com a mesma largueza que os nobres medievais esbanjavam em seus banquetes, ou seja, gastando sem se ver quanto vai pagar e, principalmente, quem vai pagar a conta.
Isto parece derivar do fato de que a maioria dos gestores destes pequenos municípios não se percebe apenas como gestores da coisa pública a serviço da sociedade que os elegeu. Não se percebem como representantes de uma instituição, mas, na maioria das vezes, se colocam como a própria instituição, personalizando-a, incorporando-a e, neste processo, fazendo dela seu feudo, sua propriedade. Tanto é que na maioria das pequenas cidades brasileiras, boa parte da população não compreende o papel institucional da Prefeitura como um desdobramento federado do Estado Nacional, mas observa tão somente o prefeito como figura central e fundamental do processo. Neste sentido, o prefeito incorpora o papel do soberano, do Estado, da autoridade máxima a despeito até do próprio Estado Nacional, que muitas vezes aquele procura incorporar, seja legislando, dirimindo conflitos ou executando seus afazeres, regidos pela velha máxima “para os amigos a lei, para os inimigos os rigores da lei”, mas não qualquer lei, e sim a lei de seus interesses.
É neste contexto que as verbas destinadas pelo Governo Federal para educação, mas também as de outros setores são apropriadas e geridas. Ou seja, como parte do patrimônio do prefeito. Os recursos são tidos como seus e ele os gere, os gasta ou não, como bem entende. Destarte, os mecanismos de controle destes recursos, quase todos eles inoperantes ou viciados pelos interesses dos prefeitos. Um exemplo cabal disso são os Conselhos Municipais de fiscalização do FUNDEB, que por lei têm autonomia para fiscalizar a aplicação dos recursos do Fundo e cobrar a sua correta utilização. Mas, na verdade terminam por não funcionar, tendo em vista que os prefeitos o viciam colocando na sua direção os seus apaniguados mediante eleições promovidas na surdina, no apagar das luzes, sem a divulgação, conhecimento e principalmente participação da sociedade civil no processo de escolha.
É por esta e por outras que acredito que não adianta apenas aumentar a carga de investimentos de 5% para 10% do PIB nos próximos anos sem antes ou em paralelo se fazer uma redefinição destes mecanismos de controle e fiscalização, visando limpar seus vícios e possibilitar que eles realmente funcionem e cumpram com seus objetivos que é fiscalizar e zelar pela boa aplicação dos recursos públicos destinados a educação. A educação brasileira, em alguns aspectos, urge por maiores investimentos, isto parece ser inegável, mas mais urgente e inegável ainda é a necessidade de aprimoramento dos mecanismos de fiscalização, controle e aplicação destes recursos, sob pena de que, se algo não for feito, boa parte dele continuar escorrendo pelo ralo da improbidade administrativa, da malversação do dinheiro público e inúmeros outros ralos que alimentam a corrupção cínica e descarada que tomou de assalto às práticas administrativas da maioria das gestões municipais de nosso país.
De um ponto de vista mais geral este fenômeno tem a ver com dois processos simultâneos e que se intercambiam, quais sejam: por uma lado, a crescente publicização do espaço privado, e por outro, a privatização daquilo que é púbico ou do interesse público pelo mundo privado. Duas faces de uma mesma moeda. Exacerbando e deformando em grande medida aquilo que Deleuze observou como sendo uma das principais características das “sociedades de controle”, a fusão do capital com o Estado. Que em nosso país tem tomado outra configuração distinta daquela analisada por Deleuze, à medida que no Brasil é cada vez mais premente o uso do Estado para substancializar e expandir a autoridade dos interesses privados, sobretudo os interesses econômicos e financeiros de uma minoria abastada e ciosa da manutenção de seus privilégios em detrimento dos interesses coletivos, do bem comum e da coisa pública. Para termos uma ideia bem clara disso, basta observarmos o número cada vez maior de grandes empresários e comerciantes que se arvoram disputar e pleitear nas eleições municipais ou estaduais um cargo público majoritário, ou até mesmo cargos de deputado – estadual ou federal. Há uma quantidade enorme de prefeitos, deputados, senadores e até governadores Brasil afora que são grandes empresários, bem sucedidos em seus negócios – Armando Monteiro Neto, Blairo Maggi, João Lyra Neto, etc. só para ficar nos exemplos mais clássicos – e que se utilizam das prerrogativas dos cargos que ocupam para fazer prevalecer os seus interesses particulares e dos grupelhos a que representam. E isto se agrava ainda mais a nível municipal, por todos os fatores já discutidos até aqui e mais alguns outros.
Neste sentido, junte-se a este caldo a visão provinciana da maioria dos prefeitos de pequenos municípios do país ou das elites governantes destas localidades, ciosas por se manterem como tal. E para tanto não medem meios, sobretudo forjando alianças entre o poder político e o poder do dinheiro local como forma de preservar os seus privilégios políticos e sociais. Para esta casta parece ser inadmissível, por exemplo, pensar, permitir ou supor que fora dela possa haver ou existir outra categoria também endinheirada e com qualquer tipo de autoridade e poder de persuasão sobre a sociedade como um todo. Em especial se esta outra casta for formada por funcionários públicos – vistos quase sempre por prefeitos e gestores, como peões, seus peões –, em especial professores, que apesar dos pesares, dificilmente aderem a discursos eleitoreiros ou às pressões políticas dos gestores municipais. Sobretudo, quando são funcionários efetivos. Para a maioria destes prefeitos o professorado é uma categoria petulante, uma das únicas nos municípios que ainda não se deixa dobrar como peões, que muitas vezes minoritariamente afrontam o poder “soberano” decretando greves e paralisações. Categoria diante da qual boa parte dos prefeitos destas pequenas cidades se sente inferiorizados intelectualmente, pois quase sempre semi-analfabetos ou com baixíssimo grau de escolaridade, a maioria quando muito tendo terminado apenas o ensino médio.
Talvez, isto explique, por exemplo, o discurso de alguns destes políticos que acreditam e alardeiam que educação se faz com amor ou por amor, sem a necessidade de uma remuneração digna e a altura do desafio. Para que fazer afagos financeiros a uma categoria que já é petulante mesmo recebendo o que recebe? Parece ser assim que a maioria dos prefeitos de nosso país enxerga a nós professores ou nos tem enxergado ao longo dos anos.
E isto tem levado a um agravamento da desvalorização social do professor ao longo dos últimos anos. A profissão tem se tornado extremamente mal vista, sobretudo por conta dos péssimos salários percebidos pelos professores, em especial se comparado com profissionais de outras áreas e com o mesmo nível de formação. Isto tem gerado um ciclo vicioso na profissão, à medida que as licenciaturas têm atraído cada vez menos alunos, e aqueles que acorrem a elas são de longe os menos talentosos. Deficiência de recursos humanos. Baixa qualificação, formação cultural precária. Esta é a realidade de nossas licenciaturas. Mas, isto não é o mais grave. O mais grave é que a maioria das pessoas que escolhem uma licenciatura o fazem, na maioria das vezes, por no momento não terem outra opção. Ou seja, por não conseguirem entrar em outro curso mais “renomado” e com possibilidade de retorno financeiro maiores ou simplesmente por uma questão de sobrevivência, não podendo entrar em qualquer outro curso ou não conseguindo um emprego público bem remunerado, só lhes resta às licenciaturas. Com isto as licenciaturas vêm perdendo seus melhores quadros, muitas vezes para profissões não tão importantes e centrais para o país como o é a de professor – um exemplo disso são os milhares de alunos que se formam todos os anos nas graduações de Administração e de Direito. E, além do mais, aqueles que se formam nas licenciaturas o fazem muito mais por uma necessidade, para garantir sua sobrevivência do que propriamente por escolha ou por prazer em seguir a profissão que escolheram. Infelizmente, esses são cada dia mais a maioria dos profissionais em educação.
Este quadro faz com que tenhamos dentro da sala de aula professores cada vez mais descompromissados com a profissão, alienados de seus diretos e que pouco ou nada reivindicam em favor de si mesmos ou de sua categoria. Primeiro, por acreditarem que a função que estão a exercer não será para sempre, é algo temporário, um bico até que se consiga “algo melhor”; segundo, por acharem que aquilo que têm ou ganham é o suficiente ou o possível para sua sobrevivência pessoal e profissional, principalmente na visão de pessoas sem maiores perspectivas de crescimento intelectual profissional na área escolhida. Quantas vezes já escutei de colegas de profissão o seguinte enunciado: para quem pouco ou nada tinha o que temos já é alguma coisa, ou o pouco é muito para quem não tinha qualquer outra perspectiva. Um exemplo disso é que pouquíssimos professores questionam os “presentes” dados por alguns gestores em forma de not ou net books, tablets ou os famigerados “rateios” de final de ano, tidos e vistos quase sempre como uma bondade do prefeito para com a categoria. Outro exemplo gritante disto é que quase nenhum professor quer que seus filhos sigam a sua carreira. Tragédia maior, a própria visão que têm de si e da profissão que abraçaram, por prazer ou por necessidade, é a pior possível. Profissão que não aconselham ser seguida por ninguém e que não titubeiam em afirmar, se pudessem, se tivessem outra oportunidade não a escolheriam mais, pois em grande medida foi a necessidade que fez a oportunidade, para a maior parte daqueles que escolheram ser professor.
Vivemos, desta forma, uma crise sem precedentes de nossa profissão. Temos dentro e fora de sala de aula – naqueles que ainda serão formados – os piores quadros profissionais se se comparados com o nível intelectual, cultural e de formação – no sentido estrito destes termos – daquele de outras profissões, que também não é tão elevado assim. Profissionais que encaram a profissão de forma burocrática, para os quais o “ensinar” é uma atividade rapidamente transformada em uma rotina mecanizada, uma obrigação que tem de ser cumprida. Que passa primeiro pela necessidade de se cumprir com horário de trabalho, em não levar falta e ver o dia descontado no final do mês. Essa parece ser a preocupação maior, para a maioria dos professores, como em qualquer outra atividade profissional de caráter técnico. Neste sentido, a maioria destes professores vai para as salas de aula muito mais em função do cumprimento de seu horário de trabalho e menos em função do prazer – dimensão que deve estar na base do exercício de qualquer profissão – de estar em sala de aula promovendo uma relação de ensino-aprendizagem. Isto tem se tornado cada dia mais notório em praticamente todas as escolas públicas do país.
Burocratização do trabalho docente, rotinização de suas práticas, pouca qualificação profissional, péssimas condições de trabalho e baixos salários. Esses são apenas alguns dos fatores que tem contribuído para uma profunda desvalorização social da docência e do professor como seu principal agente. Constantemente têm-se apontado apenas os salários incompatíveis com o nível de formação requerido pela profissão como o principal indicador deste processo, assim como da má qualidade da educação brasileira. Talvez, possa ser isso mesmo, em especial porque as coisas em nossa sociedade são cada vez mais medidas, pesadas e avaliadas pelo seu valor de compra, venda ou troca, ou melhor, em função dos valores monetários que envolvem ou mobilizam. E neste sentido, os salários dos professores da rede pública no país têm um valor de compra, de venda ou de troca baixíssimo, além de pouco mobilizar, seja simbólica ou diretamente, a economia de nossa sociedade, principalmente se se comparado a outras profissões, ou até mesmo a aqueles que estão inseridos nas redes particulares de ensino, geralmente melhor remunerados. Não que estes professores das redes particulares sejam melhores que os das redes públicas, na maioria das vezes são os mesmos, mas a Educação como negócio em nosso país tem outro valor simbólico e de troca dentro do capital social da sociedade brasileira.
No entanto, não acredito que um aumento salarial significativo resolvesse os problemas da educação no país ou apontasse por si só para a sua solução. Talvez tivéssemos um redimensionamento do valor simbólico e de troca da profissão, em especial daqueles que trabalham no setor público, aos olhos de nossa sociedade. Isto porque, em grande medida o problema ou os problemas da educação brasileira são um problema de cultura, de civilização, no sentido que Norbet Elias dá a estes termos. E uma prova cabal disso é que o ensino das escolas privadas em nosso país também não é um ensino de qualidade, tanto nos níveis fundamental quanto no médio, principalmente se vislumbrarmos a produção do conhecimento como ponto fulcral de um processo educacional de qualidade. Nossas escolas privadas seguem praticamente os mesmos programas (curriculum, diretrizes, projetos etc.) das escolas públicas, se diferenciando apenas destas últimas por questões de estrutura, acompanhamento docente e discente, cumprimento mais regular dos programas, presença da família junto à escola etc. Isto se torna patente, por exemplo, no grande fosso existente entre o ensino fundamental e médio – seja ele feito em escola pública ou privada – e o Ensino Superior no país, em especial aquele praticado nas Universidades Públicas, de longe as melhores do Brasil.
Portanto, um simples aumento salarial por si só não resolveria um problema de cultura de nossa sociedade. Problema que tem muito mais a ver com a falência da Escola enquanto uma instituição que ainda funciona nos mesmos moldes que a modernidade a instituiu e que faz circular também o mesmo modelo e propósito de conhecimento pensado pelas luzes e pela ciência positivista. Como afirma Durval Muniz de Albuquerque Jr. a esse respeito:

Entre todas as instituições que a modernidade fez emergir, entre todas aquelas que a sociedade disciplinar proporcionou a constituição, a escola é uma das mais exemplares, entre outros motivos por ser destinada à produção de subjetividades, à produção de sujeitos, à construção e veiculação de identidades, à definição de lugares de sujeito. A escola é uma das instituições sociais da modernidade que continua existindo entre nós, nestes tempos pós-modernos. Instituição que ainda goza de prestígio social, se comparada com outras instituições modernas, como o manicômio e a prisão, cada vez mais contestados e defrontados com propostas imediatas de extinção ou reforma radical. Ainda não se imagina a possibilidade de uma sociedade sem escola, da mesma forma que achamos possível vivermos sem manicômios. Como é característica das instituições sociais, a escola, quase sempre, nos aparece naturalizada, como se sempre tivesse existido, como se não fosse uma criação social e histórica recente, como se não fosse pensável o seu desaparecimento. Ao mesmo tempo, vozes de todos os lugares da sociedade enunciam a crise da escola e, como também é comum na história das instituições modernas, propõem a sua urgente e necessária reforma.
Nesta anunciada crise da instituição escolar, um tema que se debate, cada vez com mais vigor, é o lugar do professor. Como fica o professor nesta realidade escolar que parece se tornar cada vez mais hostil às suas pretensões de ensinar, de ser o sujeito da formação dos alunos? Atravessada e sitiada por mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais diversas, a escola e com ela a profissão docente, tal como foi definida na modernidade, parece estar em processo de se inviabilizar, ou, no mínimo, de perder a importância e a centralidade social que já teve. O desprestígio social do professor, da profissão docente, talvez tenha antecedido o próprio desprestígio social da escola, do ensino escolar, talvez tenha sido um dos primeiros indícios de que a instituição escolar já não gozava da irrestrita legitimidade social que ainda se acreditava possuir. Este desprestígio social do professor não se materializa, apenas, na redução progressiva de sua remuneração, em todos os níveis de ensino, mas no próprio desprestígio da profissão, na perda de status, de valor simbólico da profissão na vida social.

Problemas que tem a ver também com a burocratização e a rotinização das relações ensino-aprendizagem do que só propriamente com questões financeiras e salariais. Invertendo um enunciado em moda há alguns anos atrás, este último aspecto parece ser apenas a cobertura do bolo; mas do que serve a cobertura se a base “desonerou”, está toda esboroada, quebrada, despedaçada. Não adianta investir apenas na cobertura se nada se faz, simultaneamente, para reconstruir ou até mesmo inventar outra base. Pois, como afirma Albuquerque Jr. porque não pensarmos em uma sociedade sem escolas, já que cada vez mais aprendemos por outros meios e a partir de outros lugares. Porque não uma escola de novo tipo, fundada em outros moldes, antenada com o nosso tempo. Esta é uma possibilidade muito pouco ou nada cogitada em nossa sociedade. Ainda continuamos crentes na reforma da Escola, da forma que somos sabedores de sua crise. Mas certamente não será apenas uma melhora salarial que irá mudá-la, modificá-la e torná-la compatível com as demandas de nosso tempo.
Certamente uma melhoria salarial iria contribuir para uma revalorização profissional da carreira docente e sua reinserção positiva no imaginário social, mas, também, muito certamente, isto não surtiria um efeito imediato, como muitos pensam e apregoam, naquilo que é o mais grave, a crise na qual está inserida o nosso processo educativo como um todo. Pois, estes problemas têm a ver também com o fato da profissão docente em nosso país ser uma profissão eminentemente feminina, sobretudo no nível básico e fundamental, onde quase 80 % ou mais do quadro é composto por mulheres. E isto tem implicações seríssimas para o processo como um todo, em especial numa sociedade como a nossa ainda profundamente marcada pelo machismo, pelo mandonismo das práticas paternalistas e patrimonialistas. Práticas estas que se acentuam sobremaneira entre os nossos gestores, em sua maioria herdeiros de uma visão além de machista, patrimonialista e paternalista da sociedade, mas também caudatários de uma visão personalista e patrimonialista da administração pública, um universo ainda predominantemente masculino em nosso país. Dentro deste universo ainda masculino, machista, personalista, paternalista, patrimonialista etc. – onde até mesmo depois da eleição da primeira presidente mulher, continua-se a exaltar justamente suas qualidades que supostamente a aproximariam de um modelo masculino de gestão (a gerentona, insensível, imparcial, racional, técnica etc.) – este perfil feminino da profissão, é pensado e visto em grande medida como um reduto de fragilidade política, em especial nos estados e municípios governados por homens, ou seja, na grande maioria deles.
A própria organização sindical da categoria, na maioria dos municípios, tem também este perfil feminino, o que torna ainda mais complicado o enfrentamento político das questões atinentes à categoria. À medida que as lideranças sindicais femininas são geralmente vistas pelos governantes homens como incapacitadas para o debate e a negociação, bem como tratadas com um olhar de superioridade e desprezo por parte de gestores municipais e até mesmo estaduais. Fato este decorrente da ideia ainda bastante vicejada na nossa sociedade de que o espaço público, sobretudo o das disputas políticas, o balcão de negociação é um espaço de iguais e para iguais, é um espaço privilegiado dos homens e para os homens e, portanto, pouco afeito às mulheres, principalmente quando estas querem colocar em questão decisões masculinas. Um duplo acinte e afronta ao poder masculino. Boa parte de nossos prefeitos tem uma recusa enorme em sentar para discutir com mulheres, principalmente quando se vêm confrontados com elas e por elas. O “soberano” é duplamente afrontado, não só na sua autoridade, mas no poder que supostamente a masculinidade ainda lhe confere perante as mulheres. Esse é o imaginário que ainda permeia o nosso horizonte político.
Junte-se a isto o bloqueio cultural erguido ao longo de séculos em e por nossa sociedade que impedia, e, infelizmente, em muitos casos, ainda impede, a reação das mulheres à dominação e ao mando masculino e que ainda não foi derrubado de todo. Permanecendo ainda muito forte e estabelecido em alguns setores de nossa sociedade, em especial entre as gerações mais velhas, composta geralmente por homens e mulheres de mais de 40, 50 anos de idade e que, se não são mais a maioria dos docentes em sala de aula, ainda representam uma boa parte deles. Isto faz com que esta visão machista sobre a profissão não reflita apenas um entendimento masculino, mas também das próprias professoras, da boa parte das mulheres que estão em sala de aula, sobremaneira, nos pequenos municípios deste país. Boa parte delas reproduz esta visão, sendo muitas vezes indiferentes às questões políticas que envolvem a categoria. Muito ainda por acreditarem que é um debate e uma luta que não lhes cabe, por acreditarem que este ainda é um espaço masculino, de homens e para homens. Talvez, isto explique, por exemplo, que boa parte das professoras quando em momentos de reivindicação, de paralização, de luta política explícita, prefiram ficar na sombra, cuidando dos afazeres da casa e dos seus. Vivencio isto nos dois municípios onde leciono, São José da Coroa Grande e Água Preta, ambos na Zona da Mata Sul de Pernambuco. O que em maior ou menor grau não deixa de ser também uma realidade por demais presente na maioria dos municípios brasileiros.
Outro agravante desta situação é a inoperância e inépcia da maioria dos municípios em gerir de forma competente os recursos destinados à educação e assim virem a promover um ensino de qualidade. E isto decorre de alguns fatores. O primeiro e, talvez, o mais grave deles decorre da própria estrutura político administrativa de nosso país, diante da qual reputo aos municípios a principal responsabilidade pelo agravamento dos principais problemas que a nossa sociedade enfrenta, sobretudo em relação à educação. Temos milhares de municípios governados por gestores ineptos e inaptos, sem o mínimo de boa vontade política para promover uma gestão do dinheiro público que beneficie os anseios da coletividade ou supra com suas demandas básicas, em especial na promoção de uma educação de qualidade. Sem contar que na maioria destes municípios não há sequer a construção de planos estratégicos de gestão que visem planejar as administrações municipais a curto, médio e longo prazo. As coisas são sempre feitas aos atropelos, sempre a base do amadorismo, do improviso e do “assar para comer”. E desta forma os recursos são, quase sempre, geridos para atender aos interesses político-eleitoreiros do governante de plantão, assim como para o enriquecimento privado do mesmo e de sua meia dúzia de apaniguados e apadrinhados políticos. Que não medem meios em fazer da Prefeitura, do patrimônio púbico e dos recursos a ela atrelados uma extensão dos bens privados daqueles, numa clara reprodução da cultura do jeitinho, do privilégio, do patrimonialismo e da corrupção, que se tornou endêmica em nosso país. Atingindo de forma sistemática a quase todos, senão a todos, os municípios da federação, em todos os níveis da administração pública. Uma administração que vem sendo cada vez mais privatizada por interesses individuais, familiares ou de pequenos grupos ou setores da sociedade.
A cultura do jeitinho, do se dar bem a qualquer custo ou à custa dos outros têm se mostrado uma cruel realidade de nossa sociedade, principalmente quando se trata da relação desta com a coisa pública, tida quase sempre como coisa de ninguém e que, portanto, qualquer um pode ou poderá vir a se apossar, tomar para si, assumindo não só o seu controle, mas, sobretudo, o direito de usufruto em benefício próprio e não mais da coletividade. Essa ideia parece ter se tornado um cultura assentada na grande maioria dos municípios brasileiros, e dela não escapa a gestão da educação, justamente esta que deveria contribuir para a construção de uma cultura em contrário. Temos inúmeros prefeitos que sequer terminaram o ensino médio – não que diploma de nível superior seja atestado de honestidade ou um pré-requisito indispensável para uma boa gestão da coisa pública -, que mal frequentaram os bancos escolares e que, portanto, tem um entendimento extremamente limitado do que é a educação, em especial dos direcionamentos e particularidades desta questão no Brasil, nos seus estados e, o que é pior ainda, nos seus municípios. Incapazes de discuti-la com profundidade, seja seus problemas, seja as possíveis soluções, terminam por entregar o controle da Secretaria de Educação a um apaniguado seu, que muitas vezes é tão inepto e inapto quanto.
Neste sentido, o que mais vemos em nossos municípios são secretários de educação que pouco ou nada entendem do metier. Desconhecendo a estrutura da educação no país, suas injunções políticas, históricas, sociais, econômicas e culturais e as possibilidades de melhoramento qualitativo que o próprio sistema enseja. Por incompetência e ineficiência na gestão da mesma, terminam por reproduzir modelos educativos já prontos, sem a mínima problematização ou criticidade, como se fossem apenas meras receitas de bolo, que servem para ser preparadas e comidas em qualquer lugar, independente dos ingredientes disponíveis e do gosto que vai ter o resultado final. Desconsiderando desta maneira as particularidades, os gostos e as demandas dos lugares onde estão inseridos. Situação que se agrava também por que a maioria dos secretários é totalmente subserviente ao prefeito e as suas vontades, em especial no tocante ao uso dos recursos financeiros destinados ao setor. Isto vale também para aqueles secretários que mesmo tendo um bom nível de entendimento do processo, conhecendo seus problemas, com capacidade de vislumbrar projetos e propostas para equacioná-los esbarram na falta de autonomia diante do “soberano” para por em prática as suas ideias. Sobretudo, se estas implicarem despesas acima daquelas que o prefeito esteja disposto a custear. Em especial se esse custeio atingir aquilo que ele considera sua, e apenas sua, cota-parte dos recursos destinados à educação.
Um exemplo bastante claro disto que venho descrevendo é que praticamente nenhuma Secretaria Municipal de Educação, principalmente dos pequenos municípios, procuram por em prática um dispositivo criado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN/96, ao qual reputo uma importância fundamental para se promover o melhoramento da qualidade da educação no país, qual seja: a criação dos Sistemas Municipais de Ensino – SME. O que permitiria, dentre outras coisas, a cada município do país gerir sua educação de forma autônoma – e aqui autonomia, assim como para LDB, não significa independência, mas sim a construção de uma relação dialógica entre a realidade local e os planos mais gerais, como, por exemplo, a microrregião, o estado, a região, o país, tendo como parâmetro norteador o Plano Nacional de Educação – PNE – levando em consideração as particularidades da realidade local para a definição, por exemplo, de onde e como aplicar os recursos, qual curriculum construir e definir de acordo com a realidade local, que sistema de avaliação promover, etc. O mesmo vale para as escolas e suas gestões, que também deveriam ser autônomos em relação às Secretarias de Educação e aos secretários, definindo suas prioridades e demandas a partir da construção dos Projetos Políticos Pedagógicos – PPPs de cada escola. Construídos, sempre, em consonância com a realidade e interesses da comunidade onde a mesma está inserida e não dos interesses dos secretários ou prefeitos.
Mas, infelizmente, nada disso funciona ou é levado a efeito em praticamente nenhum município de médio ou pequeno porte do país, onde os gestores são nomeados e indicados pelo prefeito, assim como toda a equipe de coordenadores, supervisores e por ai vai. O que é feito levando-se em consideração critérios muito mais político-eleitoreiros do que a competência e o conhecimento de quem vão ocupar o cargo e exercer a função. A LDB dispõe, por exemplo, que para os cargos de gestão escolar dever-se-ia ser feito eleições junto à comunidade escolar para a escolha dos mesmos. No entanto, este dispositivo é veementemente combatido ou silenciado pela maioria dos prefeitos e seus secretários, que temem que esses postos estratégicos da administração pública municipal caiam nas mãos de seus adversários políticos, o que poderia lhes causar empecilhos às manobras de desvio de dinheiro e malversação dos recursos destinados à educação.
Desta forma o desvio do dinheiro público, a corrupção, a incompetência, a corrupção, a má gestão da coisa pública, tomado quase sempre como bem privado, como propriedade particular se constituem em grandes entraves ao melhoramento da qualidade da educação no Brasil. Mas, que em grande medida não passam apenas pela necessidade de redimensionamentos a nível federal, como um reajustamento dos mecanismos de controle e fiscalização dos gastos públicos com educação em estados e municípios e uma punição mais rápida, rígida e severa para quem o desvia, mas, sobretudo – e ai a tarefa é mais difícil, mas não impossível, pois é um problema da cultura política brasileira –, um redimensionamento das práticas políticas e administrativas a nível municipal, por que ainda muito distantes da sua modernização e ainda profundamente embebidas no patrimonialismo, no clientelismo, no nepotismo indireto, no apadrinhamento, no mandonismo, no machismo, no paternalismo, no personalismo e ainda por cima envoltas na nuvem sombria da cultura do jeitinho, do privilégio e da corrupção.



Um comentário:

  1. Parabéns pelo artigo professor. São muitos os aspectos que poderiam ser comentados - sobretudo elogiados-, mas gostaria apenas de adicionar mais uma necessidade a ser suprida pelos professores,sobretudo os do ensino fundamental e médio.
    O aluno sempre tratado como uma ``peça social´´ em processo de lapidação,aquele que vai abastecer o sistema operante em nossa sociedade, com sua mão-de-obra- manual ou intelectual-, raramente compreende - ou não lhe é feito enxergar-, sua atual e futura posição nessa mesma sociedade excludente tão bem debatida pelo ilustre mestre.
    O professor- em minha humilde opinião-, não deve se colocar como uma máquina produtora de novos sujeitos sociais - que irão abastecer os anseios-, da política maquiavélica brasileira, deve antes de mais nada situar os alunos dentro desta estrutura, e sobretudo, alertá-los, conscientizá-los, para que possam se assim desejarem - e lutarem, a batalha não é fácil-, emancipar-se, libertar-se, revolucionar-se, e consequentemente, não apenas entenderem sua sociedade. Marx já insistia no pensamento de que; a ótica filosófica de explicar o mundo não é absolutamente primordial, mas sim mudá-lo, transformá-lo.
    Todos pensam em terminar os estudos, alguns pensam em ingressar no ensino superior - raramente optar pela carreira de professor-, pelos aspectos tão bem explicados pelo autor deste mesmo blog, mas raros são os que entendem o sistema atual, criticar o capitalismo, por exemplo, virou moda, mas o que é capitalismo? Nem todos saberão responder.
    Em suma, para compreender o mundo é necessário revoluciona-se - aqui entra o papel do professor-, se os alunos não compreendem seu universo presente e futuro, e sobretudo o seu papel, nunca poderão mudar quaisquer que sejam os pilares desta sociedade. Não devem ser `` peças sociais imóveis´´ mas sim, agentes transformadores e aversos a qualquer dogmatismo, preconceito, tradicionalismo, alienação, e tantas outras mazelas existentes em nossa sociedade.
    Parabéns ao nosso ilustre Mestre pelo seu artigo, e deixo por aqui meu simples comentário, nesse ambiente que o mesmo denominou de democrático.

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