Impressões de um
professor/pesquisador de História sobre a Educação brasileira.
Wagner Geminiano dos
Santos
Resumo: Este ensaio
busca pensar aquilo que se convencionou chamar de educação brasileira a partir
do estabelecimento de algumas questões que julgo estruturais e que constituem
este campo do saber, no cruzamento com outras questões mais conjunturais e
pontuais que permeiam e constituem a educação em nosso país. Todas estas
questões são tomadas e pensadas aqui a partir das minhas experiências e
impressões enquanto docente. É neste sentido que procurei preservar no texto um
caráter puramente ensaístico e de experimentação e exercício de pensamento, sem
maiores pretensões científicas. Portanto, ao longo de sua construção, dispensei
o uso de citações e referências documentais ou bibliográficas. No entanto, isto
não impediu que sua escrita estivesse atravessada por inúmeros pensamentos e
autores que o leitor mais atento logo identificará. E, por isso mesmo ele não é
fruto apenas de meu esforço intelectual individual, mas é resultado da relação
com inúmeras vozes e discursos, aos quais busquei deixar no anonimato, na
tentativa de construção de uma espécie de memorial daquilo que entendo como
sendo a educação brasileira no cruzamento de minha formação como professor,
historiador e cidadão.
Palavras-chave:
Educação
brasileira, universalização, professor, escola, discente.
Gostaria, neste texto,
de pensar e discutir alguns dos aspectos que julgo problemáticos naquilo que se
sensocomunizou chamar de “Educação brasileira”, em especial no seu nível
básico, hoje chamado de Ensino Fundamental. Tentarei fazer isto percorrendo o
seguinte caminho: primeiro, abordarei aqueles aspectos mais gerais e
estruturantes que formam, a meu ver, a espinha dorsal desta área do saber e das
instituições a ela correlatas; em seguida procurarei pensar algumas dimensões
mais conjunturais, que dizem respeito ao momento em que estamos vivendo, às
práticas políticas, econômicas, sociais e culturais e às políticas públicas
para educação atreladas ao processo educacional do país; por fim, de forma mais
particular, tentarei pensar este processo a partir do ensino de história e da
minha experiência docente em alguns municípios do interior de Pernambuco. Farei
este esforço na tentativa de construção de uma espécie de memorial daquilo que
entendo como sendo a educação brasileira no cruzamento de minha formação como
professor, historiador e cidadão.
Para iniciar esta
discussão, quero problematizar um enunciado que reverbera e ressoa praticamente
em todo o corpo social de nosso país e que parece contribuir substantivamente
para a imagem profundamente negativa que os profissionais da educação têm no
Brasil. É o enunciado que coloca o processo educativo como missão, como
sacerdócio e o professor como aquele que fez os votos e abraçou a causa –
jesuítica, por sinal -, antes de tudo por amor e compromisso de fé do que por
qualquer outra coisa – muito menos dinheiro, na forma de bons salários, claro;
pecado mortal da profissão. Neste sentido, ao longo dos anos, fomos alçados a
condição de mártires, de redentores, de salvadores da pátria e construtores da
nação – talvez por isso se explique o sucesso algumas utopias, ou melhor, de
alguns discursos idealistas, que mais parecem literatura de autoajuda, vide o
sucesso de Augusto Cury entre os educadores, ou as duas coisas ao mesmo tempo,
e porque não salvacionistas ainda presentes em nosso meio e a fazer grande
sucesso e estardalhaço vendendo livros e mais livros. Este campo do saber
talvez seja o único onde este tipo de discurso ainda produz efeitos de verdade
sobre os pares, confluindo para uma larga produção científica pautada por estes
enunciados.
Este enunciado que diz
que o verdadeiro professor, o educador, na acepção ampla da palavra, é aquele que
exerce a profissão por amor, por devoção a uma causa, por compromisso a uma
missão. Ou seja, o professor antes de ser um profissional, alguém que trabalha
para ser reconhecido e valorizado por suas práticas profissionais e
intelectuais, seria um altruísta nato, alguém que se doa completamente, de
corpo e espírito, a sua missão, pois é nesta que a priori já se encontra o
reconhecimento e o valor do que fazem; enfim, o reconhecimento e o valor não
estariam no professor e nas suas práticas profissionais cotidianas, mas já
estariam definidos a priori na missão que escolheram defender, a princípio, de
corpo e alma. Mas alma, espírito e intelecto do que corpo, pois neste discurso
o professor parece não ter corpo – portanto, não precisa comer, vestir, se
divertir, descansar, neste sentido não necessita de bons salários, de férias,
de descanso, podendo trabalhar diuturnamente em sua missão –, quando muito ele
aparece apenas como ferramenta para a realização de sua missão; corpo
assexuado, como o dos anjos, a proteger a humanidade em nós ou a tentar,
cristamente, construir a humanidade em nós. Corpo macerados por uma árdua
jornada de trabalho – três expedientes, muitas vezes –, mas sempre resignado,
pois expiando e remindo não só os seus pecados, mas, sobretudo, os pecados do
mundo da sociedade.
O trabalho do
professor, assim como no discurso cristão da culpabilização do homem pela
queda, serviria para expiar o pecado da ignorância que deixou o homem em queda,
seria o meio para se conseguir alcançar a salvação da nação, do todo social
elevando-a aos píncaros da civilização e do progresso social e humano. O
Professor, este ser transcendental, um misto de Cristo e anjo de luz decaído
dos tempos pós-modernos, assexuado, quase sem corpo, seria o redentor de nossa
sociedade, de nosso tempo. Daí o discurso que diz que a educação é o único
caminho e solução para a nossa sociedade, discurso este profundamente repetido
e alardeado aos quatro ventos em nosso país pelos diferentes setores de nossa
sociedade numa reedição pós-moderna da passagem bíblica “eu sou o caminho, a
verdade e a vida”.
Deste enunciado
decorre, a meu ver, outro problema gravíssimo de nosso processo educativo, qual
seja: o discurso religioso e cristão que se encontra profundamente arraigado e constituindo
ainda as bases das práticas educacionais da maioria de nossos professores e
professoras – façamos aqui uma distinção de gênero, pois o professor além de
ter corpo, ele é investido de um gênero que interfere consideravelmente nas
suas práticas educativas e, sobretudo, na educação básica de nosso país, onde a
maioria do quadro docente é composta por mulheres, mas trataremos disto mais
adiante -, apesar de nosso Estado se dizer laico e propor também uma educação
assentada nestas características e preceitos.
Discurso cristão este
que norteia em grande medida as concepções salvacionistas que permeiam boa
parte das obras que buscam discutir a educação em nosso país. Num Estado que se
quer ou que se diz laico e que deveria, portanto, fazer da educação e do
processo educativo um meio para realizar este fim, isto parece não acontecer.
Pois, cada dia mais as práticas educativas de boa parte dos professores se
encontram cristianizadas e prontas a cristianizar, a doutrinar, fazendo do
processo educativo algo muito parecido com uma prática de catequização. Isto se
explicita, principalmente, quando o docente quer impor certa verdade aos seus
“discípulos” e estes o contestam, reagem contra sua assertiva. Diante de tal
recusa, a reação da maioria dos docentes caminha, quase sempre, para a pregação
culpabilizadora, para o discurso religioso moralizante utilizado como arma
educativa e disciplinadora diante do antigo discípulo transformado em herege.
Mas, me tranqüilizaria
muito se o efeito deste discurso fosse apenas este – talvez o mais banal deles.
No entanto, as coisas tendem a ser muito piores, descambando, na maioria das
vezes, para o preconceito, para posturas, conservadoras e facistas de negação
do outro. Ao longo da minha carreira docente – que ainda não é longa, diga-se
de passagem – já presenciei cenas estarrecedoras, sendo legitimadas e
justificadas por este discurso educativo-religioso.
Desde gestores que,
para repreenderem seus alunos, diante de supostas atitudes incorretas dos
mesmos, se utilizam e tomam o discurso moralista religioso como pedra
abalizadora das atitudes dos discentes sejam elas quais forem e que sentido
for, proferindo impropérios do tipo: “suas atitudes não fazem parte da criação
divina, não faz parte das coisas de Deus, Ele condena tudo isso”, “Deus não
criou seu filhos para a prostituição, para a marginalidade, para a
homossexualidade, portanto, sejam bons alunos, respeitem o professor para ser
alguém na vida, porque Deus condena que quer cair na marginalidade, e ele é
nosso Pai salvador”.
Até professores que por
puro despreparo e desconhecimento diante de temas candentes de nosso tempo como
as drogas, as práticas homossexuais, homoeróticas, homo afetivas, a
prostituição e outros mais se ancoram na muleta do moralismo religioso para se
esquivarem do debate e se eximirem de tratar de tais assuntos. E quando o
fazem, o fazem a partir do ângulo religioso, moralista e cristão, disseminado o
preconceito e ódio ao diferente, ao outro. Neste sentido, já presenciei vários
colegas professores argumentando que não tratam destes temas com seus alunos
porque o consideram não natural, em especial em relação ao homossexualismo,
pois o consideram não fazendo parte da criação divina. Já escutei de colegas
até que por o considerarem não natural acreditavam que o homossexualismo seria
uma doença e que deveria ser encarado como tal, com o objetivo de sanar a
epidemia que assola a nossa sociedade nesses dias de pós-modernidade, ou seja,
alguns de meus colegas, mesmo no papel de educadores, continuam vendo alguns
temas e tratando-os como se estivessem fora da norma, fora da curva; enfim,
como uma anormalidade dentro dos desígnios da criação. Pautam-se assim
embasados não só por um discurso moralista religioso, mas também retomam um
discurso médico já contestado e posto em cheque desde a década de 60 do século
passado pela própria ciência médica.
No entanto, este
discurso religioso-cristão que se imiscuiu e se insinua nas práticas educativas
de boa parte dos docentes em nosso país (re)produz uma série de outros
preconceitos e práticas conservadoras dentro de sala de aula, sobretudo em
relação a outras religiões e culturas e contra quem as pratica, assim como
contra quem não é praticante de nenhuma religião ou que não professe nenhuma
fé. Neste sentido, assistimos quase que cotidianamente a justificação e a
legitimação das práticas religiosas cristãs e seus dogmas – católicos ou
protestantes – como verdadeiros, superiores, em especial em relação às
religiões de origem afro.
Isto se torna mais
enfático ainda em escolas que têm a disciplina de Religião sendo lecionada. Ao
lecionarem esta disciplina a maioria dos professores ensinam muito mais os
dogmas e práticas cristãs – católicas e/ou protestante –, fazendo proselitismo
religioso – o que é vedado pela LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional) – do que estabelecer uma discussão substancial e profunda sobre a
própria idéia de religião, as múltiplas possibilidades de expressão da fé e do
crível, a diversidade de possibilidades de abordagens e de visões de mundo
propiciadas pelas diversas religiões. Neste sentido, esta disciplina é ensinada
de forma a justificar e legitimar uma única religião possível e verdadeira, o
Cristianismo, católico ou protestante, tendo em vista que nem os fundamentos
teológicos e filosóficos básicos desta religião são discutidos, mas apenas
apresentados como verdades absolutas e eternas. A disciplina de religião, onde
ela é praticada, não serve para ensinar, mas para doutrinar os alunos nas
práticas cristãs, com a escola se colocando desta maneira como uma extensão da
Igreja, católica ou protestante, e as aulas aparecendo mais como uma extensão
das aulas de catecismo ou das escolas dominicais. Fora disso só existiria erro,
heresia, demonização.
Assim, a maioria de
nossas escolas e seus docentes fica restrita a visão cristã de religião e ao
Cristianismo como única religião praticável dentro daquilo que é aceito como
normal, verdadeiro e absoluto. Propagandeada pela maioria dos professores como
a única visão e crença possível, afirmando-se sobre as outras religiões a
partir da demonização e negação das mesmas, de sua adjetivação como algo
demoníaco, inferior, baixo, marginal. Não só estas outras religiões, mas também
os seus praticantes e práticas seriam de outra esfera, a esfera do negativo, do
mal, do desvio que atingiria aquele não só em espírito, mas no seu caráter, na
sua moral, no seu ser. Reproduz-se assim uma cultura de intolerância e
preconceito que se acentua ainda mais quando o que está em questão são as
religiões e culturas de origem afro – apesar da Lei nº 10.639 que institui o
ensino da cultura afro-brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio com
o objetivo de quebrar com estes preconceitos –, por motivos óbvios, aos quais a
maiorias de nossas escolas e docentes fazem vista grossa e ouvidos surdos,
pouco contribuindo para se romper com o preconceito por contra estas religiões
e seus praticantes, reproduzindo-o ao invés de questioná-lo em suas raízes.
Quando muito as nossas escolas fazem uma leitura destas religiões e de suas
culturas e praticantes que beira o pitoresco, o folclórico, o estandardizado
tratando-os como o exótico, o estranho, o fora da norma; o que só contribui
para alimentar o preconceito e a exclusão.
Esta imagética que se
criou em nosso país sobre os docentes e suas práticas parece ser ainda
resquício da própria história da educação no país e de como ela foi praticada e
exercida ao longo dos séculos. Entregue desde o início da colonização a Igreja
e mais especificamente aos Jesuítas, nosso processo de educação das “massas”
esteve, desta forma, quase sempre ligado aos ideais missionários e sacerdotais,
de desprendimento das coisas do mundo, ligado ao ideal catequético-civilizador
cristão que se impunha a partir do princípio da negação do outro e de suas
práticas culturais – o índio, o africano e suas religiões e culturas. Mesmo
depois das reformas pombalinas no século XVIII e as tentativas de expulsão dos
jesuítas da América Portuguesa e a ascensão do Estado como garantidor de uma
educação laica, o nosso processo educacional nunca se encontrou de um todo
dissociado das práticas cristãs, pelo contrário, varou os séculos atravessado
pelas mesmas, constituindo a educação brasileira claramente numa experiência
fundada e pautada por práticas cristãs ortodoxas e conservadoras.
Tendências educacionais
como a Escola Nova ao tentar se estabelecerem em nosso país tiveram de fazer
este enfrentamento, ainda no início do século XX, às práticas educacionais de
cunho cristão, não só no ensino, mas também na própria estrutura e concepção de
educação no país. Enfrentamento este que ainda não conseguiu por fim a estas
práticas, mas que vem convivendo com elas até nossos dias, mesmo depois do
processo de redemocratização do país e a laicização do Estado brasileiro sob um
viés constitucional e cidadão, outorgado pela Constituição de 1988. Mesmo
assim, aquelas práticas continuam profundamente arraigadas no cotidiano escolar
e atreladas às práticas docentes de boa parte de nossos professores, se
constituindo, assim, como um sério problema de nosso sistema educacional que
precisa ser enfrentado urgentemente, mas que infelizmente pouco se fala e quase
ninguém se pronuncia ou se posiciona a respeito.
Um segundo aspecto do
processo educacional brasileiro que precisa ser urgentemente considerado e
pensado e que também pouco se faz ou se fala a respeito, é o processo de
universalização do ensino no país, como ele foi iniciado, em que moldes e como
ele vem sendo levado a efeito. Processo este iniciado do dia para a noite e sem
considerar o contexto histórico, social, cultural, político e econômico de
nosso país e que, por estes e outros motivos – que passarei a elencar de agora
por diante – se constitui num dos maiores entraves para construir uma educação
de qualidade no Brasil.
O nosso processo de
universalização do ensino – fundamental e médio – é bastante tardio e ainda não
se realizou por completo, principalmente em relação àquilo que se chama de
ensino médio. No entanto, ele começou a ser levado a efeito nos últimos anos do
período da Ditadura Militar e buscou consolidar-se a partir do processo de
redemocratização do país já na década de 90 do século passado. Contudo, isto
foi feito a toque de caixa, tentando romper com o atraso e com um processo
secular de exclusão que caracterizavam nossa educação. Processo este feito
quase sempre a partir de modelos importados dos EUA e da Europa e que foram
transplantados para a nossa realidade sem ao menos se considerar nossas
particularidades históricas, sociais, culturais, políticas e econômicas.
Desconsiderou-se completamente,
por exemplo, o fato de que vinhamos de um processo educacional excludente,
fundado numa educação de cunho religioso, cristão e autoritário e que se fazia
direcionada quando muito às classes médias e as elites do país. O nosso
processo civilizador, para utilizar uma expressão clara a Norbet Elias, quando
muito atingia as nossas classes médias, civilizadas ainda muito mais dentro de
ideias conservadores cristãos e católicos do que propriamente nos moldes
laicos, burgueses e capitalistas que dispõe a ideia de meritocracia,
competitividade e individualismo como pedras balizadoras e princípios básicos
de uma educação laica.
Neste sentido, até a
década de 70 e 80 do século passado, a educação, fosse ela pública ou privada,
se constituía no direito de uma minoria. Onde, diante disso e apesar da parca
estrutura, a superlotação das salas de aula não se constituía em um problema
grave da educação do país, naquele período. Assim como o que chamamos hoje de
indisciplina não se apresentava como percalço para docentes e gestores. Pois, a
educação se fazia para uma parcela da sociedade que a via e percebia como um
dos meios para manter, senão superdimensionar e consolidar, sua posição dentro
desta sociedade. A educação era significada como elemento definidor e legitimador
do status quo, sobretudo ao longo do período
da Ditadura Militar. E em grande medida era assim que ela era vista e
significada por aqueles que frequentavam os bancos escolares. Pois, uma
educação pensada para reproduzir o modus
vivendi e o habitus elitista e
classe média em nosso país. Assim, o processo educacional brasileiro se
conformava e se constituía correlato ao processo disciplinar e civilizador
desta parcela de nossa sociedade e aos seus anseios políticos, sociais,
econômicos e culturais.
Mas, este cenário se
altera profundamente com o processo de universalização do ensino iniciado entre
finais da década de 1970 e a década de 1980. A medida que praticamente do dia
para a noite são jogados dentro das poucas escolas públicas construídas no país
milhares e milhares de crianças e jovens, sem que ante tenha havido qualquer
preparação por parte das entidades federativas (União, estados e municípios)
para acolher tal demanda e a diversidade que ela ensejava em uma infraestrutura
já deficitária. Era necessário ter havido a construção de novas escolas – mas
não só isso –, a distribuição de livros e materiais didáticos, a contratação
imediata de novos professores, assim como a capacitação dos mesmos e a
qualificação dos que já faziam parte do quadro para atender este novo e variado
público. Nada disso foi feito ou considerado a tempo. Contudo, a cada ano a
demanda só fazia crescer e se multiplicar.
Decorrente disto, não
houve um investimento imediato por parte do Estado na formação dos professores
para que eles fossem “adaptados” a nova realidade das salas de aula criada por
esta demanda crescente que bate a todo dia a porta das escolas em todo o país.
Pessoas de classes sociais distintas daquelas a que as escolas públicas estavam
acostumadas a atender, mas que se vê obrigada a fazer a inclusão, juntando-os,
misturando-os com os antigos alunos classe média e das elites locais,
fomentando na inclusão uma exclusão social cada vez mais gritante, exacerbando
as distinções e diferenças sociais entre o filho do pobre e o estudante
riquinho de classe média ou filho do mandatário ou do grande comerciante local.
Incluir para excluir, para marcar a diferença – e isto se explicita em
comportamentos que vão se tornando quase que naturais, como a preferência dos
professores pelos filhos geralmente branquinhos, limpinhos, “educados” das
famílias de classe média ou das elites em detrimento do olhar torto, reprovador
diante do mestiço, do negrinho filho do pobre, geralmente empregado daquelas
famílias que agora tinham de conviver no mesmo espaço e que ao menos legal e
teoricamente tinham de ser acolhidos e tratados com isonomia.
É sob este signo que se
inicia o processo de universalização do ensino no Brasil. Milhares de pessoas,
passos, pernas e corpos diferentes, diversos, divergentes se dirigindo, dia
após dia em maior número, às escolas. Fruto de realidades diversas, variadas,
marginais com as quais a maioria dos professores e a própria escola não estava
habituada ou acostumada a lidar. Como esta escola se torna um ambiente difícil,
excludente para grande parte deste novo público também pouco acostumado com
ela, com suas regras, com seu modus
operandi, e isto se traduziu por muito tempo nos elevados índices de
evasão, de desistência deste público em continuar num espaço em que eles pouco
tinham espaço, a não ser como corpos deslocados.
Corpos estes
constituídos em um modus vivendi
diferente e diametralmente oposto àquele que a maioria dos professores estava
acostumada a lidar. Corpos rebeldes, não educados, não civilizados no modo de
vida burguês, capitalista ou até mesmo cristão-conservador, vindos de um caldo
cultural ante e anti capitalista, como costuma dizer o antropólogo José Carlos
Rodrigues. Corpos com os quais a maioria dos professores não sabe como
trabalhar, não sabem o que fazer ou como proceder. Professores que até então
eram pensados assexuadamente – as “tias”, estes seres assexuados, que nem
famílias conseguiram constituir, a não ser àquela que abraçaram na sua missão,
imagem esta a muito cristalizada sobre as professoras, tendo em vista que esta
era até bem pouco tempo atrás uma profissão eminentemente feminina, em especial
nas séries iniciais e no que hoje se chama de ensino fundamental – como pessoas
compostas apenas de intelecto, se vêm diante de uma multiplicidade de corpos
com a sexualidade a flor da pele, que se expressam pela violência dos gestos e
das palavras. Fruto de uma visão de mundo, de uma cultura e de relações sociais
forjadas na base da violência, da sexualidade aflorada e explicitada cotidianamente
sem grandes pudores.
Afinal, os corpos que
todos os dias adentram as salas de aula de nosso país, em especial das escolas
públicas, forma talhados e trabalhados num espaço social onde a distinção do
público e do privado ainda não se fizeram sentir como nos espaços de classe
média e de elite. Espaços domésticos que condensam, muitas vezes, no mesmo
ambiente o quarto, a sala, a cozinha, o banheiro, expressando desta forma uma
medievalidade dos costumes ainda bastante presente nos dias atuais. Os alunos que
batem a porta de nossas escolas estão, quase todos eles, acostumados a ver e a
presenciar a violência entre os pais ou entre os parceiros de seus pais ou
mães. Acostumados desde cedo a verem as práticas sexuais de seus pais ou
responsáveis de forma explicita, escancarada, dada a falta de privacidade na
maioria das moradias em que os mesmos habitam. Quando não com os pais, com os
animais de estimação ou de criação, cães, gatos, porcos, caprinos, equinos,
bovinos, asininos, com que muitas vezes se iniciam sexualmente, em especial os
homens.
Conhecedores desde cedo
das mazelas da violência física e psicológica, do encontro precoce com o sexo,
com as drogas, com a violência doméstica. Marcados perla necessidade e pela
busca diária por sobrevivência num mundo onde palavras como educação,
meritocracia, civilização pouco parecem fazer sentido aos seus ouvidos. São
geralmente estes corpos assim talhados que começamos a ter dentro de nossas
escolas a partir do início do processo de universalização do ensino no país.
E como a maioria dos
professores, senão todos, estava – e ainda estão – despreparados para
“educa-los”, “civiliza-los” –
dificuldade esta que atribuo à rebeldia, à resistência a um dado modelo
civilizador, a um dado habitus que
querem lhe impor numa estratégia aculturante – tomam esta rebeldia, esta
revolta como indício de uma indisciplina profunda e incorrigível, ou melhor, de
uma falta de disciplina, de educação. E por isto passam a ser vistos quase como
não humanos, tratados quase como animais, como bestas humanas destituídas de
sua alma, de sua essência, daquilo que os tornariam humanos. Enfim, a escola e
boa parte dos professores parecem querer negar e lhes extirpar àquilo que é
mais humano naqueles corpos, como diria Nietzsche, o que lhes é humano,
demasiado humano: a violência, o sexo, o desejo, a revolta, a resistência. Com
esta postura, escola e professores, buscam, antes de tudo, se afirmarem como
melhores, como superiores, pois supostamente pautados por valores
civilizatórios, portanto ocupando outro estágio de, mais avançado, mais
evoluído, no processo civilizador. Dai poderem justificar a sua boa
consciência. A boa consciência daqueles que tentaram humanizar e civilizar
aqueles que se recusam a sê-lo.
Diante de uma
consciência tranquila, embalada pelo argumento de quem tudo fez e faz, diante
de todas as dificuldades possíveis, para educar as “massas” incultas, tanto a
Escola quanto a maioria dos profissionais a ela ligado pouco para ou nunca
param para pensar e problematizar que o mundo que eles oferecem a este público
é um mundo insignificante e sem sentido, destituído de qualquer capacidade
mobilizadora para uma maioria que só conhece como realidade imediata a
violência, a privação, os prazeres do sexo, o delírio oblíquo das drogas, a
libertinagem de uma vida sem fronteiras, sem limites e sem um conjunto de
regras muito claras, a não serem aquelas determinadas pela necessidade da
sobrevivência diária, cotidiana. Justamente porque são vidas que vivem nas
fronteiras, no limite da vida e da morte, da sobrevivência, da privação, da
marginalidade, da exclusão. Daí sua rebeldia, sua revolta, sua “indisciplina”.
Indisciplina. É por
este ângulo que a Escola e boa parte dos docentes, senão todos, enxerga e
nomeiam o comportamento deste novo público que acorre todos os dias à sua
porta. Pois, tomam o seu mundo, os seus critérios como abalizadores do outro.
Neste sentido, a Escola os enxergam e os nomeiam pelo negativo, pela falta,
como corpos e pessoas que precisam ser educados, disciplinados, civilizados,
pois, supostamente, estas características lhes faltam. São pessoas mal
educadas, indisciplinadas, rudes, ignorantes, torpes, fora da norma. Talvez,
por isto, muitos professores, em especial àqueles a mais tempo na profissão e
alguns novatos também, sejam saudosos dos métodos tradicionais de ensino, ou
melhor, dos castigos e da palmatória como meio de educar e disciplinar o outro.
Não enxergam que se
possível fosse retornar àqueles métodos, eles não funcionariam, não surtiriam
os mesmos efeitos de poder e de verdade de outrora, pois o público e os corpos
a que eles se destinariam são outros. Como dito anteriormente, temos agora em
nossas escolas uma maioria de corpos talhados na e pela violência física e
simbólica do dia-a-dia, e que, por isso mesmo, são rebeldes, resistentes ao
castigo, ao disciplinamento, a punição. São corpos encarapaçados pelo tempo,
pela constância da violência de onde nasceram e estão a crescer e a se
constituir enquanto humanos. São, portanto, corpos bastante diferentes dos
corpos classe média com os quais a maioria das escolas privadas de nosso tempo
costumam trabalhar e que já fora num passado não muito distante o principal e
majoritário público das escolas públicas.
Estes corpos classe
média, são corpos com outros habitus,
vindos de um mundo e constituídos por uma visão do mesmo, totalmente distinta
dos deste novo público de massas. Talhados geralmente por uma forte moralidade
religiosa cristã desde a infância; crescendo já marcados pelo signo do
afastamento entre os corpos, contornados por reservas morais, físicas e
psicológicas tanto em relação ao sexo quanto em relação à violência. Corpos
para os quais o castigo e a punição funcionam como humilhação, como signo do
fracasso em não conseguir governar os “excessos” do próprio corpo, enfim, como
mecanismo disciplinador e contingencioso de práticas tidas como anormais
utilizadas pelos pares quando o próprio indivíduo não consegue, por sí só, se
governar. Significações estas que não ressoam sobre e entre este novo grupo,
acostumado no seu cotidiano a lidar de forma bastante naturalizada com os
castigos e as punições, que antes de serem vistos como tais, como práticas
humilhantes, corretivas, disciplinares aparecem muito mais como práticas
normais, naturais, parte integrante de suas vidas e realidades cotidianas.
Basta observar como
estes corpos se comunicam, como tratam uns aos outros. Com tapas, socos,
chutes, ponta pés, empurrões etc. E quando repreendidos por algum professor
desavisado, saem com a máxima: “é só brincadeira, professor”; para perplexidade
da maioria dos docentes. O paradoxo está justamente no fato de que os docentes,
ou a maioria deles, ainda não se deu conta que a violência é uma linguagem,
sobretudo, uma linguagem que está inscrita e inscreve a subjetividade destes e
para estes corpos, ou melhor, a violência é a sua linguagem, a mais
significante, a mais explicita e utilizada para sua expressão. Pois, foi nesta
linguagem que eles foram talhados e educados e é por meio dela que se expressam
de forma mais emblemática: nos gestos, nas relações e até mesmo nas palavras
que usam para significa-la, todas elas carregadas de violência, de erotismo, de
pulsões desejantes.
E diante desta
linguagem a Escola enquanto instituição encontra-se totalmente perdida,
desorientada e sem rumo. Isto porque o modelo que temos de escola ainda é
aquele pensado pela modernidade e voltado para atender as necessidades e
demandas daquilo que Michel Foucault chamou de sociedade disciplinar. Uma
escola que ainda tem como modelo o exército e a prisão, na sua posição
arquitetônica, e a fábrica e o hospital, no seu modelo gerencial. Este modelo
já não atende mais as demandas de nosso tempo, de uma sociedade
pós-disciplinar, pós-industrial, pós-moderna para muitos.
Temos ainda uma escola
pensada arquitetonicamente como prisão, com portões, grades, cadeados, composta
de salas quadriculares dando, geralmente, ou para um corredor ou para um grande
salão central de onde se pode, por seus corredores, passar em revista todas as
salas, de onde todas elas podem ser observadas ao mesmo tempo. Uma escola ainda
pensada como fábrica, com horários a serem rigidamente cumpridos, regularmente
observados ao longo de um árduo ano de trabalho – a educação dos bancos
escolares é apresentada com a mesma obrigatoriedade do trabalho – com feriados,
folgas, recessos e férias predeterminados por gestores, que mais parecem
patrões – dada a cobrança por resultados, metas, objetivos, etc. –, com toques
de sirene que determinam o horário de entrar e sair, de recrear, de ter o
intervalo antes da volta do trabalho – afinal, o estudante também é visto como
um laborador intelectual em desenvolvimento.
Uma escola que tem de
seguir todo um planejamento gerencial, imposto de cima para baixo, segundo uma
hierarquia previamente definida. Uma escola que é regida como hospital a partir
da prática da catalogação daqueles que fazem parte do seu corpo, da sua
separação, da sua seriação e segmentação pelo mecanismo da ficha, das
anotações, pelo exame contínuo e regular das atividades docentes. Uma escola ainda
pensada como caserna, como exército, com seus alunos rigidamente sentados,
enfileirados lado a lado, do menor para o maior, por horas a fio, diante da
lousa e do mestre.
É este tipo de
funcionamento de nossas escolas que encontra uma resistência tamanha nos nossos
dias. Este é cada vez mais um modelo falido, que a cada dia só faz comprovar
sua falência diante da resistência e inquietude dos corpos que se negam a serem
disciplinados e esquadrinhados dentro dos muros desta prisão-escola que mais
parece um Frankenstein paralítico, postado diante de nosso tempo e das práticas
sociais, culturais e políticas dele constitutivos, murmurando palavras sem
sentido.
São escolas inadequadas
do ponto de vista de sua estrutura física, que não oferecem salas de aula suficientes
e adequadas para atender a demanda deste novo público e para estes corpos
outros. Escola que assim como os nossos presídios encontram-se abarrotadas,
superlotadas aumentando ainda mais o processo de produção da “delinquência”, da
“indisciplina” ou aquelas práticas que só conseguimos nomear com estes termos,
por até mesmo no campo da linguagem ainda estarmos limitados por uma
conceituação e um vocabulário educacional, sobretudo no cotidiano escolar, que
há muito não consegue mais ver e dizer o nosso tempo. Um léxico de milhares de
expressões, reproduzido e multiplicado aos quatro ventos, mas que nada diz
sobre nossa condição, que não a significa mais, que parece expressar tão
somente o silêncio e a impotência de nossas palavras e a surdez de nossos ouvidos
diante de falas, práticas e ruídos que ecoam de dentro das salas de aula e que
a Escola ainda fundada em linguagem moribunda não consegue sequer escutar,
quanto mais compreender e dialogar com ela. Tem sobre este público e seu
murmúrio apenas uma linguagem e um discurso insignificante que a cada dia que
passa vai ficando mais mudo, oblíquo, afônico.
Temos ainda uma
instituição escolar fundada em práticas e procedimentos disciplinares que só
constituem e enquadram aquilo que está na norma ou que é visto enquanto tal. Uma
Escola, em sua maior parte, incapaz de lidar com o diferente e a diferença que
a todo dia bate sua porta. Incapaz de compreender a diversidade imanente ao seu
público, muitas vezes pensado por ela como homogêneo. Escola que, depois de iniciado
o processo de universalização do ensino, se quer inclusiva, mas que cada vez
mais opera por exclusão. Como diz Alfredo Veiga-Neto, é uma escola que inclui
para excluir, que inclui para marcar claramente os lugares do normal e do
anormal, do educado e do não educado, do incluído por ser igual e do excluído
por sua irredutível diferença. Uma escola que ainda trabalha para reduzir
homogeneizar comportamentos, para educar mentes e corpos dentro de um modelo
civilizador pensado como único e verdadeiro, no qual a diferença só encontra
sentido como exceção e confirmação a regra civilizatória e disciplinar. Como
elemento justificador e legitimador deste processo educacional visto e imposto
como necessário para a constituição da ordem, do progresso, do desenvolvimento
do indivíduo em particular e da sociedade no geral. Indivíduo quase sempre
pensado como peça do social, que deve ter as arestas de suas diferenças
aparadas para se encaixar harmoniosamente no todo do corpo social.
Uma escola totalmente
despreparada para os conflitos e tensões que são inerentes ao corpo social. Que
não enxerga outra saída para ele que não seja a punição, a interdição. Isto
porque se encontra cada vez mais isolada do corpo social. Isolamento político,
social, cultural. Sua voz, seu discurso não reverberam mais na sociedade, não
produz mais os efeitos de verdade que a modernidade requeria da mesma. Isto
parece ocorrer em grande medida porque modernamente a Escola ainda se pensa
como lugar privilegiado de reprodução e circulação do saber em nossa sociedade.
Desconhecendo ou tornando-se indiferentes aos inúmeros outros lugares de
produção e circulação do sabe em nosso tempo. Como, por exemplo, os
conglomerados midiáticos e as diferentes mídias operadas por eles (TV, jornais,
jogos eletrônicos e, sobretudo, a internet), a publicidade, o marketing, as
religiões e as igrejas, os círculos de amizade, a comunidade, a rua etc.
Lugares nos quais o saber é não só aprendido, reproduzido, mas, sobretudo,
construído, praticado, experimentado diferentemente do que ocorre na maioria
das escolas de nosso país, onde o saber é muito mais reproduzido do que
socialmente construído em meio às demandas culturais, políticas e econômicas do
lugar onde a mesma está inserida e onde seu público habita, mora, vive.
Uma escola que
desconhece quase que por completo a comunidade em que está inserida e que
quando a conhece pouco faz para entrar em contato com ela. Se resguardando
muitas vezes no pseudo argumento e na falácia de que a mesma está e sempre
esteve de portas abertas para a comunidade e que esta é quem não procura àquela.
Quando muito a Escola entra em contato com a comunidade nos encontros de pais e
mestres e nos plantões pedagógicos, que funcionam muito mais como instrumentos
de desencargo de consciência da própria Escola, para ela poder dizer
tranquilamente “fiz minha parte”, do que como uma prática afetiva para
estabelecer um contato mais profícuo e duradouro com a comunidade.
Encontros estes, quase
todos eles, esvaziados pelos pais e pelos próprios alunos que observam nestes
momentos apenas eventos nos quais os professores e a equipe gestora encontram
para mais uma vez reprovar o comportamento dos seus filhos e, por consequência,
a sua atuação enquanto pais – pais e mães que o são a partir de outros modelos,
de outros modus vivendi – ou
responsáveis por aqueles. Momentos em que a Escola faz a sua sessão de terapia
e desencargo de consciência procurando afirmar para si mesma que está a fazer
alguma coisa, que está cumprindo com o seu papel na tentativa de educar os
filhos dos outros de e para a nossa sociedade.
A Escola enquanto
instituição precisa não só estar com as portas abertas à espera da comunidade,
mas precisa antes de tudo começar a se relacionar com ela, se inserir em seu
meio para conhecer as suas demandas, os seus anseios, as suas necessidades.
Para entender a sua linguagem, que parece desconhecer por completo. A Escola
precisa parar de fazer de conta e reconhecer sua atual impotência e inoperância
diante da comunidade em partícula e da sociedade no geral. É preciso que ela
saia de dentro de seus muros e vá conhecer a sociedade e a comunidade em que
está inserida. Mas que vá desarmada, sem se o direito daquele que detêm o
conhecimento autorizado e, portanto, que se insinua como superior diante do mundo
e das coisas, diante do outro. A escola tem de perceber e, sobretudo, admitir
que não conhece a comunidade e que urge conhece-la para saber de sua demandas,
de sua necessidades, para a partir daí traçar estratégias para uma relação mais
próxima, menos impositiva e mais democrática e multifacetada. Além do mais, a
Escola precisa se fazer reconhecer, construir para si novos significados, o que
não pode mais fazer sozinha ou apenas a partir de instancias superiores; mas,
sim em relação com a sociedade na qual se insere. A Escola precisa ser
investida de novos significados e sentidos construídos em conjunto e
partilhados por ela e pela comunidade em particular e pela sociedade em geral.
Mais do que nunca
parece necessário construir uma Escola significante socialmente. Porque a que temos
hoje está vazia de sentido e não cumpre com o processo de universalização a que
se destina e muito menos com o projeto de educação a que se arvorou desde o
início da modernidade. E para tanto é preciso que a Escola entenda de uma vez
por todas que ela não é mais o locus
privilegiado da sensocomunização do saber em nossa sociedade. A nossa
sociedade, hoje, independe da Escola para conhecer. E isto explicita claramente
o esvaziamento de sentido do referencial significante sobre o qual ela esteve
pautada. Se a sociedade não precisa mais da escola para conhecer, esta perde
totalmente o seu sentido e a função social construída para ela ao longo da
modernidade. Ainda por cima, o conhecimento que ela oferece parte em grande
medida de um ideal meritocrático que só faz plenamente sentido dentro do mundo
pequeno burguês das classes médias urbanas. Ou seja, até mesmo este último
bastião de significado ao qual a Escola ainda busca se apegar não ressoa mais
entre o principal público que ela atende atualmente – em especial a escola
pública – que são as classes populares, os estratos mais humildes de nossa
sociedade. No entanto, mesmo diante deste quadro, ela procura se manter
enquanto instituição à medida que se pauta na legitimidade de fazer circular um
saber institucionalizado e autorizado, por mais que necessário e indispensável
ao mundo pequeno burguês de nossas classes médias.
Para a maioria do atual
público que frequenta os bancos escolares, em especial de nossas escolas
públicas, tal saber oficial, meritocrático parece não constituir sentido
prático ou teórico para às suas vidas, para o seu cotidiano. Este público ainda
frequenta os bancos escolares muito mais por questões outras. Na maioria de
nossas escolas públicas de nosso país isto parece acontecer muito mais por
conta que a Escola passou a representar a sobrevivência, literalmente falando,
para boa parcela deste público, carente das mínimas condições básicas de
sobrevivência no seu dia-a-dia, sejam aqueles que frequentam diretamente à
escola, os alunos, seja aqueles que são seus responsáveis, os pais e
familiares, para quem a escola parece representar minimamente a segurança
alimentar se seus filhos, pelo menos no turno em que eles estudam.
Ou seja, boa parte
deste público frequenta as escolas de nosso país, primeiro porque o Bolsa
Família – um dos principais programas assistenciais e de distribuição de renda
do Governo Federal – está, a princípio, atrelado a frequência dos alunos à
escola. Portanto, a ida dos filhos à escola implica diretamente no recebimento
deste benefício, por mais que o controle de tal frequência não seja tão rígido
quanto deveria ser, mas ao menos garante a permanência de boa parte dos alunos
nas escolas, assim como a necessidade regular de suas matrículas ano a ano, sob
pena do benefício ser suspenso. Como boa parte das famílias humildes do país
tem no Bolsa Família um fundamental complemento de sua renda mensal, senão toda
ela em alguns casos, a ida para a escola de filhos, netos, sobrinhos etc.
torna-se quase que obrigatória, pois implica diretamente na sobrevivência
diária dessas famílias.
Além disto, outros
programas federais como o PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil –
foram atrelados e condicionados a permanência e frequentação deste público de
crianças e adolescentes à escola, em especial a partir da segunda metade da
década de 1990. Se formos fazer um estudo comparativo do período anterior a
estes projeto com o período que sucede sua implantação, veremos como os índices
de evasão e desistência vêm caindo gradativamente, ano após ano. Mas, menos por
conta de um crescente entendimento da importância por e para estas pessoas a
quem tais programas se destinas, mas mais pelas obrigações que eles implicam e
a necessidade que geram. Pois, ao que me parece, antes deles a maioria dos pais
e responsáveis preferiam deixar seus filhos e tutelados em casa, ajudando nas
atividades laborativas de sua sobrevivência cotidiana, do que manda-los para a
escola.
Segundo, a frequência e
a frequentação dos mesmos se dão também por conta da própria merenda oferecida
nas escolas, que em grande medida se apresenta como um complemento das parcas
refeições diárias que estas pessoas têm acesso. Mais uma vez, uma questão de
sobrevivência, de pragmatismo. Terceiro, atrelado a estes dois motivos
anteriores, parece se encontrar o fato de que a maioria dos pais e responsáveis
enxergam na escola uma possibilidade e um lugar onde seus filhos irão encontrar
aquilo que eles não conseguem fornecer e encontrar em casa: comida, alimentação,
enfim, uma relativa segurança em meio ao “caos” em que vivem. Quarto, o
interesse primeiro da maioria dos alunos em frequentar a escola parece estar no
fato de que neste espaço encontram um ambiente propício para o divertimento,
para a construção de pertencimentos que eles próprios constituem as expensas
das regras de convivência estabelecidas pela instituição. Neste sentido, a
escola é vista muito mais como um lugar aonde se vai para encontrar os amigos,
os colegas: para brincar, se descontrair, se divertir sem ser interrompido pela
necessidade do trabalho cotidiano junto aos pais para o sustento da casa e da
família. A escola se torna um espaço privilegiado também para o aprendizado do
namoro, da azaração, da iniciação sexual, para por em prática aquilo que lhe é
explicitado naturalmente no seu dia-a-dia.
Quinto, por a escola se
pensar como família ou como uma extensão da família, nuclear e burguesa, a
maioria dos pais a toma não como escola, mas como a própria família que deve
não só contribuir para formar o cidadão, mas também arcar com as demais
premissas e prerrogativas do ideal de família nuclear burguesa: cuidadora,
mantenedora, educadora, acolhedora. E isto se agrava sobremaneira no nosso
tempo, onde o próprio conceito de família nuclear e burguesa não diz mais quase
nada sobre nossa realidade, sobretudo para este público que frequenta as
escolas públicas. Público para o qual o conceito de família é totalmente ou são
totalmente outros, quase tão múltiplos quanto o número de alunos que se dirigem
a escola.
Famílias constituídas,
muitas vezes, apenas pela mãe ou pela avó ou a tia ou o parente distante. Mães
que não vivem mais com os pais biológicos de seus filhos ou que se quer os
conhecem, mas que agora tem um padrasto ou vice-e-versa. Ou a mãe que desistiu
de apanhar dos muitos homens que passou por sua vida e agora vive uma relação homo
afetiva com parceira fixa ou relações homoeróticas com parceiras variadas. Ou o
pai que mora com a mulher “oficial” e a amante dentro da mesma casa, juntando
também os filhos de ambas. Famílias múltiplas, enfim. E diante delas a Escola
encontra-se sem rumo, sem prumo, nomeando-as com o único vocabulário que lhe
resta e sabe manejar com precisão: famílias desestruturadas, anômalas,
anormais, pois nenhuma se encaixa no seu modelo de família, no seu ideal
burguês de família nuclear.
Até mesmo os
professores, mais próximos desta realidade, se tornam impotentes diante desta
realidade, pois frutos de outra geração na qual a autoridade do pai ainda se
fazia sentir, mas já em transição para estes novos tempos se sentem perdidos
entre um tempo e outro, entre a compreensão e a recusa, entre a condescendência
e a punição, entre o agir e o omitir-se. Paradoxo da profissão. Na falta do que
fazer, continuar fazendo o mesmo, ou seja, nada.
O despreparo ou o vazio
da Escola diante de nosso tempo é tão patente que ela pouco sabe o que fazer
diante o avanço das novas tecnologias da informação, da comunicação e da
eletrônica. Equipamentos cada vez mais divulgados, difundidos e utilizados pelos
alunos, mas que a Escola não sabe não sabe como aproveitar todo o seu potencial
para a produção e circulação de conhecimento. E como não sabe o que fazer,
proíbe. Proíbe ou tentam proibir o uso de celulares, aparelhos eletrônicos e
congêneres no momento das aulas, desperdiçando assim o potencial e as
possibilidades abertas por estas tecnologias para a aprendizagem e a produção
do conhecimento.
A escola não consegue
compreender também aquilo que Michel Mafesoli chama de processo de tribalização
da sociedade, no qual os elementos de identificação societais – modo de vestir,
locais de frequentação, gosto musical, artistas e esportes preferidos etc. –
passam a definir as relações grupais, constituindo tribos que se relacionam
muito mais pela sinergia dos gostos, dos gestos, atitudes e desejos semelhantes
do que por uma clara distinção social marcada por critérios econômicos ou
puramente classistas. Assim, o uso do boné, de determinadas vestimentas, como
shorts curtos, blusas coladas se tornam símbolos de identificação e
pertencimento a um grupo, a uma tribo. Assim como aquilo que se escuta, que se
faz e que se fala, ou seja, as próprias atitudes e gestos definem esta pertença
a um grupo – periguetes, roqueiros, rappers, skatistas, pagodeiros, boizinhos
(as), surfistas, swingueiros, emos, punks, góticos e inúmeros outros que surgem
a cada dia – ou a alguns grupos ao mesmo tempo. Tribos estas que vem se
multiplicando ao sabor dos ventos e na velocidade dos acontecimentos que
caracterizam nosso tempo.
Diante desta
diversidade de tribos, nossas escolas ainda trabalham pautadas pela
homogeneização pelo uniforme, que tenta, em vão, substituir as identidades
móveis, com as quais não sabe lidar, dialogar, pela identidade fixa do
estudante fardado, numa tentativa de reduzir o múltiplo e o diverso ao único,
ao mesmo. Reduzindo a diferença à identidade; identidade esta que não foi
construída numa relação de partilhamento simbólico, de sentimentos de pertença
e identificação, mas impostas de cima para baixo, como resultado de uma relação
de dominação e sua aculturação por aqueles que frequentam os bancos escolares.
Assim, quando a escola
diz que o aluno não pode usar boné, que não pode usar a bermuda ou a blusa que
usa cotidianamente é muito menos uma regra que se impõe do que a quebra, muitas
vezes dolorosa, com o processo de construção das identidades sociais destes
alunos. Agravando e tornando, desta maneira, muito mais confuso e conflituoso o
processo de construção das identidades sociais destes sujeitos. Alimentando, assim,
sua rebeldia, sua revolta, sua “indisciplina” diante da Escola e promovendo
ainda mais a antipatia destes sujeitos por esta instituição que passa a
significar para eles muito mais um espaço de cerceamento, do tolhimento de suas
invenções enquanto sujeitos sociais, do que uma possibilitadora deste processo.
Gostaria agora de
passar a tratar de assuntos mais pontuais em relação à educação brasileira. Mas,
que de uma forma ou de outra não deixam de estar relacionados às questões já
tratadas até aqui, na primeira parte deste texto. O primeiro ponto que gostaria
de abordar é o financiamento público da educação nos níveis fundamental e médio
em nosso país – e aqui tratarei apenas dos casos da escola pública e somente
quando necessário reportar-me-ei às escolas privadas – e as responsabilidades e
competências dos entes federados diante dela.
Ao longo dos últimos
anos têm se estabelecido uma discussão candente em torno da necessidade de se
aumentar o valor destinado pela União para ser aplicado na educação em nosso
país. A maioria dos especialistas, das centrais sindicais e dos movimentos
sociais ligados à educação é taxativa em apontar para a necessidade de uma
elevação do repasse dos atuais 5% para 10% do nosso Produto Interno Bruto –
PIB, sob o argumento de que só com este montante de investimentos poderemos ter
realmente uma educação pública, gratuita e de qualidade em nosso país. Esta elevação é apontada como a última
formula mágica para se resolver, de uma vez por todas, todos os problemas da
educação no Brasil. Quantas fórmulas mágicas já forma inoculadas em nosso
sistema educacional!!! E agora mais uma.
No entanto, não vejo
esta elevação de valores com tão bons olhos, principalmente se tentarmos
vislumbrar que, por si só, ela não resolverá os problemas de nosso sistema
educacional como um todo. Não porque seja contra o aumento dos repasses, não.
Mas, porque entendo que, antes de serem implementados, outros impasses têm de
ser resolvidos para que o dinheiro destinado cumpra realmente com os objetivos
de sua destinação e chegue onde realmente necessita chegar. Digo isto, pois,
acredito que o principal problema da educação pública no Brasil não é
basicamente de falta de dinheiro, este já foi um dia, mas sim o gerenciamento e
aplicação do mesmo, principalmente por parte dos gestores municipais e
estaduais, em especial pelos primeiros.
É certo que o sistema
de educação pública no Brasil padece de um grave problema de infra-estrutura
(falta de escolas, escolas em condições precárias, salas de aulas mal
projetadas e abarrotadas, falta de bibliotecas e espaços adequados para o uso
de novas tecnologias e recursos didáticos, a falta dos próprios meios áudios
visuais etc., etc.) que só podem ser equacionados com o aumento do investimento
na educação. Mas, a meu ver estes problemas encontram seu principal entrave não
na quantidade de dinheiro que é repassado para o investimento direto em
educação – sobretudo nos últimos oito anos, período no qual tais recursos vêm
aumentando ano a ano – mas, no seu mau gerenciamento e desvio por parte,
sobremaneira, de gestores municipais e estaduais.
Os mecanismos de
distribuição dos investimentos em educação criados pelo Governo Federal,
sobretudo a Lei do FUNDEB – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação –
têm possibilitado uma distribuição mais igualitária e equitativa dos recursos federais
destinados a estados e municípios. No entanto, estes recursos que são enviados
para serem aplicados prioritária e exclusivamente na educação, quando chegam a
seu destino, em especial na maioria dos municípios, são desviados de seus
objetivos e se esvaem por vários ralos: em especial o da corrupção e o da
apropriação indébita de dinheiro público para fins particulares. O dinheiro do
FUNDEB é uma verdadeira mina de ouro para um sem número de prefeitos corruptos
e inescrupulosos. E isto, infelizmente, é um problema presente em praticamente
todos os municípios brasileiros. Tais práticas têm se tornado um habitus entre aqueles que administram
tais municípios, assim como também permeia o imaginário daqueles que pretendem
um cargo público de gestão. A corrupção tem se tornado um elemento definidor da
cultura política brasileira e vem sendo subjetivada com certa naturalidade por
boa parte da sociedade. E isto parece se agravar sobremaneira nas menores
unidades federativas da nação, os municípios; principalmente nos menores onde
os meios de denúncia e combate a tais práticas são parcos ou inexistentes.
Fruto de uma dificuldade
da própria sociedade brasileira, nas suas várias nuances e matizes, em separar
o público do privado, em estabelecer uma dissociação clara, nítida entre a
esfera do público – sobretudo, o público entendido como o Estado – e a esfera
privada; suprimindo assim a distância entre os interesses particulares,
familiares ou de pequenos grupos dos interesses da coletividade, num movimento
em que os interesses daqueles são legitimados e justificados como sendo os
interesses de todos. Desta forma, o Estado brasileiro nas suas várias esferas e
entre suas entidades federadas não conseguiu, ainda, cumprir aquela que segundo
Philippe Àries e Roger Chartier se configura como uma das principais
características do mundo moderno, que é a construção do Estado como principal
agente e símbolo, por excelência, da esfera pública. No Brasil, este parece estar
cada dia mais contaminado por interesses privados e/ou privatistas.
Isto se deve ao fato de
que no Brasil a configuração e a construção do Estado moderno tomou características
e rumos diversos daqueles experimentados pela maioria dos países Europeus e
pelos EUA, por exemplo. A construção do Estado Nacional, moderno, no Brasil, se
deu, desde o final do período colonial, mediante a imbricação com interesses
particulares, ora de determinadas famílias, ora de certas oligarquias
regionais, ora das elites como um todo, ora do “mercado” e quase nunca como um
instrumento ou instituição a serviço da coletividade ou de seus interesses
maiores. Desta forma, a sobreposição dos interesses particulares aos interesses
públicos, desde o início da colonização da América Portuguesa, sempre se
fizeram presentes como uma marca da história da administração deste território
que hoje chamamos de Brasil. E isto só tem se agravado ao longo do tempo,
estabelecendo-se e petrificando-se em uma cultura política que adoça o
apadrinhamento, o clientelismo e o privilégio como prática cotidiana e a
corrupção, a malversação do dinheiro público e a apropriação indébita como
meios de garantir a sua perpetuação enquanto habitus característico de nossa sociedade e de suas práticas
políticas, em especial no trato com a coisa pública.
Nos dias de hoje, estas
praticas tornam-se mais enfáticas e problemáticas ainda nos pequenos municípios
do país. Onde a maioria dos prefeitos desconhece ou são indiferentes a qualquer
princípio de ordenamento ou separação da esfera pública da esfera privada,
sobretudo no trato dos bens públicos e dos recursos financeiros por ele
geridos. Na maioria dos casos, os bens públicos são tratados e vistos como
coisa de ninguém e, portanto, a meio passo de serem usados como uma extensão do
patrimônio privado do gestor de plantão. Destino semelhante encontra boa parte
dos recursos financeiros, prontamente endereçados, das mais variadas formas,
aos bolsos do prefeito e de uma meia dúzia de apaniguados que se servem do
mesmo com a mesma largueza que os nobres medievais esbanjavam em seus banquetes,
ou seja, gastando sem se ver quanto vai pagar e, principalmente, quem vai pagar
a conta.
Isto parece derivar do
fato de que a maioria dos gestores destes pequenos municípios não se percebe
apenas como gestores da coisa pública a serviço da sociedade que os elegeu. Não
se percebem como representantes de uma instituição, mas, na maioria das vezes,
se colocam como a própria instituição, personalizando-a, incorporando-a e,
neste processo, fazendo dela seu feudo, sua propriedade. Tanto é que na maioria
das pequenas cidades brasileiras, boa parte da população não compreende o papel
institucional da Prefeitura como um desdobramento federado do Estado Nacional,
mas observa tão somente o prefeito como figura central e fundamental do
processo. Neste sentido, o prefeito incorpora o papel do soberano, do Estado,
da autoridade máxima a despeito até do próprio Estado Nacional, que muitas
vezes aquele procura incorporar, seja legislando, dirimindo conflitos ou
executando seus afazeres, regidos pela velha máxima “para os amigos a lei, para
os inimigos os rigores da lei”, mas não qualquer lei, e sim a lei de seus
interesses.
É neste contexto que as
verbas destinadas pelo Governo Federal para educação, mas também as de outros
setores são apropriadas e geridas. Ou seja, como parte do patrimônio do
prefeito. Os recursos são tidos como seus e ele os gere, os gasta ou não, como
bem entende. Destarte, os mecanismos de controle destes recursos, quase todos
eles inoperantes ou viciados pelos interesses dos prefeitos. Um exemplo cabal
disso são os Conselhos Municipais de fiscalização do FUNDEB, que por lei têm
autonomia para fiscalizar a aplicação dos recursos do Fundo e cobrar a sua
correta utilização. Mas, na verdade terminam por não funcionar, tendo em vista
que os prefeitos o viciam colocando na sua direção os seus apaniguados mediante
eleições promovidas na surdina, no apagar das luzes, sem a divulgação,
conhecimento e principalmente participação da sociedade civil no processo de
escolha.
É por esta e por outras
que acredito que não adianta apenas aumentar a carga de investimentos de 5%
para 10% do PIB nos próximos anos sem antes ou em paralelo se fazer uma
redefinição destes mecanismos de controle e fiscalização, visando limpar seus
vícios e possibilitar que eles realmente funcionem e cumpram com seus objetivos
que é fiscalizar e zelar pela boa aplicação dos recursos públicos destinados a
educação. A educação brasileira, em alguns aspectos, urge por maiores
investimentos, isto parece ser inegável, mas mais urgente e inegável ainda é a
necessidade de aprimoramento dos mecanismos de fiscalização, controle e
aplicação destes recursos, sob pena de que, se algo não for feito, boa parte
dele continuar escorrendo pelo ralo da improbidade administrativa, da
malversação do dinheiro público e inúmeros outros ralos que alimentam a
corrupção cínica e descarada que tomou de assalto às práticas administrativas
da maioria das gestões municipais de nosso país.
De um ponto de vista
mais geral este fenômeno tem a ver com dois processos simultâneos e que se
intercambiam, quais sejam: por uma lado, a crescente publicização do espaço
privado, e por outro, a privatização daquilo que é púbico ou do interesse
público pelo mundo privado. Duas faces de uma mesma moeda. Exacerbando e
deformando em grande medida aquilo que Deleuze observou como sendo uma das
principais características das “sociedades de controle”, a fusão do capital com
o Estado. Que em nosso país tem tomado outra configuração distinta daquela
analisada por Deleuze, à medida que no Brasil é cada vez mais premente o uso do
Estado para substancializar e expandir a autoridade dos interesses privados,
sobretudo os interesses econômicos e financeiros de uma minoria abastada e
ciosa da manutenção de seus privilégios em detrimento dos interesses coletivos,
do bem comum e da coisa pública. Para termos uma ideia bem clara disso, basta
observarmos o número cada vez maior de grandes empresários e comerciantes que
se arvoram disputar e pleitear nas eleições municipais ou estaduais um cargo
público majoritário, ou até mesmo cargos de deputado – estadual ou federal. Há
uma quantidade enorme de prefeitos, deputados, senadores e até governadores
Brasil afora que são grandes empresários, bem sucedidos em seus negócios –
Armando Monteiro Neto, Blairo Maggi, João Lyra Neto, etc. só para ficar nos
exemplos mais clássicos – e que se utilizam das prerrogativas dos cargos que
ocupam para fazer prevalecer os seus interesses particulares e dos grupelhos a
que representam. E isto se agrava ainda mais a nível municipal, por todos os
fatores já discutidos até aqui e mais alguns outros.
Neste sentido, junte-se
a este caldo a visão provinciana da maioria dos prefeitos de pequenos
municípios do país ou das elites governantes destas localidades, ciosas por se
manterem como tal. E para tanto não medem meios, sobretudo forjando alianças
entre o poder político e o poder do dinheiro local como forma de preservar os
seus privilégios políticos e sociais. Para esta casta parece ser inadmissível,
por exemplo, pensar, permitir ou supor que fora dela possa haver ou existir
outra categoria também endinheirada e com qualquer tipo de autoridade e poder
de persuasão sobre a sociedade como um todo. Em especial se esta outra casta
for formada por funcionários públicos – vistos quase sempre por prefeitos e gestores,
como peões, seus peões –, em especial professores, que apesar dos pesares,
dificilmente aderem a discursos eleitoreiros ou às pressões políticas dos
gestores municipais. Sobretudo, quando são funcionários efetivos. Para a maioria
destes prefeitos o professorado é uma categoria petulante, uma das únicas nos
municípios que ainda não se deixa dobrar como peões, que muitas vezes
minoritariamente afrontam o poder “soberano” decretando greves e paralisações.
Categoria diante da qual boa parte dos prefeitos destas pequenas cidades se
sente inferiorizados intelectualmente, pois quase sempre semi-analfabetos ou
com baixíssimo grau de escolaridade, a maioria quando muito tendo terminado
apenas o ensino médio.
Talvez, isto explique,
por exemplo, o discurso de alguns destes políticos que acreditam e alardeiam
que educação se faz com amor ou por amor, sem a necessidade de uma remuneração
digna e a altura do desafio. Para que fazer afagos financeiros a uma categoria
que já é petulante mesmo recebendo o que recebe? Parece ser assim que a maioria
dos prefeitos de nosso país enxerga a nós professores ou nos tem enxergado ao
longo dos anos.
E isto tem levado a um
agravamento da desvalorização social do professor ao longo dos últimos anos. A
profissão tem se tornado extremamente mal vista, sobretudo por conta dos
péssimos salários percebidos pelos professores, em especial se comparado com
profissionais de outras áreas e com o mesmo nível de formação. Isto tem gerado
um ciclo vicioso na profissão, à medida que as licenciaturas têm atraído cada
vez menos alunos, e aqueles que acorrem a elas são de longe os menos
talentosos. Deficiência de recursos humanos. Baixa qualificação, formação
cultural precária. Esta é a realidade de nossas licenciaturas. Mas, isto não é
o mais grave. O mais grave é que a maioria das pessoas que escolhem uma
licenciatura o fazem, na maioria das vezes, por no momento não terem outra
opção. Ou seja, por não conseguirem entrar em outro curso mais “renomado” e com
possibilidade de retorno financeiro maiores ou simplesmente por uma questão de
sobrevivência, não podendo entrar em qualquer outro curso ou não conseguindo um
emprego público bem remunerado, só lhes resta às licenciaturas. Com isto as
licenciaturas vêm perdendo seus melhores quadros, muitas vezes para profissões
não tão importantes e centrais para o país como o é a de professor – um exemplo
disso são os milhares de alunos que se formam todos os anos nas graduações de
Administração e de Direito. E, além do mais, aqueles que se formam nas
licenciaturas o fazem muito mais por uma necessidade, para garantir sua
sobrevivência do que propriamente por escolha ou por prazer em seguir a
profissão que escolheram. Infelizmente, esses são cada dia mais a maioria dos
profissionais em educação.
Este quadro faz com que
tenhamos dentro da sala de aula professores cada vez mais descompromissados com
a profissão, alienados de seus diretos e que pouco ou nada reivindicam em favor
de si mesmos ou de sua categoria. Primeiro, por acreditarem que a função que
estão a exercer não será para sempre, é algo temporário, um bico até que se
consiga “algo melhor”; segundo, por acharem que aquilo que têm ou ganham é o
suficiente ou o possível para sua sobrevivência pessoal e profissional,
principalmente na visão de pessoas sem maiores perspectivas de crescimento
intelectual profissional na área escolhida. Quantas vezes já escutei de colegas
de profissão o seguinte enunciado: para quem pouco ou nada tinha o que temos já
é alguma coisa, ou o pouco é muito para quem não tinha qualquer outra
perspectiva. Um exemplo disso é que pouquíssimos professores questionam os
“presentes” dados por alguns gestores em forma de not ou net books, tablets ou
os famigerados “rateios” de final de ano, tidos e vistos quase sempre como uma
bondade do prefeito para com a categoria. Outro exemplo gritante disto é que
quase nenhum professor quer que seus filhos sigam a sua carreira. Tragédia
maior, a própria visão que têm de si e da profissão que abraçaram, por prazer
ou por necessidade, é a pior possível. Profissão que não aconselham ser seguida
por ninguém e que não titubeiam em afirmar, se pudessem, se tivessem outra
oportunidade não a escolheriam mais, pois em grande medida foi a necessidade
que fez a oportunidade, para a maior parte daqueles que escolheram ser
professor.
Vivemos, desta forma,
uma crise sem precedentes de nossa profissão. Temos dentro e fora de sala de
aula – naqueles que ainda serão formados – os piores quadros profissionais se
se comparados com o nível intelectual, cultural e de formação – no sentido
estrito destes termos – daquele de outras profissões, que também não é tão
elevado assim. Profissionais que encaram a profissão de forma burocrática, para
os quais o “ensinar” é uma atividade rapidamente transformada em uma rotina mecanizada,
uma obrigação que tem de ser cumprida. Que passa primeiro pela necessidade de
se cumprir com horário de trabalho, em não levar falta e ver o dia descontado
no final do mês. Essa parece ser a preocupação maior, para a maioria dos
professores, como em qualquer outra atividade profissional de caráter técnico.
Neste sentido, a maioria destes professores vai para as salas de aula muito
mais em função do cumprimento de seu horário de trabalho e menos em função do
prazer – dimensão que deve estar na base do exercício de qualquer profissão –
de estar em sala de aula promovendo uma relação de ensino-aprendizagem. Isto
tem se tornado cada dia mais notório em praticamente todas as escolas públicas
do país.
Burocratização do
trabalho docente, rotinização de suas práticas, pouca qualificação
profissional, péssimas condições de trabalho e baixos salários. Esses são
apenas alguns dos fatores que tem contribuído para uma profunda desvalorização
social da docência e do professor como seu principal agente. Constantemente
têm-se apontado apenas os salários incompatíveis com o nível de formação
requerido pela profissão como o principal indicador deste processo, assim como
da má qualidade da educação brasileira. Talvez, possa ser isso mesmo, em
especial porque as coisas em nossa sociedade são cada vez mais medidas, pesadas
e avaliadas pelo seu valor de compra, venda ou troca, ou melhor, em função dos
valores monetários que envolvem ou mobilizam. E neste sentido, os salários dos
professores da rede pública no país têm um valor de compra, de venda ou de
troca baixíssimo, além de pouco mobilizar, seja simbólica ou diretamente, a
economia de nossa sociedade, principalmente se se comparado a outras
profissões, ou até mesmo a aqueles que estão inseridos nas redes particulares de
ensino, geralmente melhor remunerados. Não que estes professores das redes
particulares sejam melhores que os das redes públicas, na maioria das vezes são
os mesmos, mas a Educação como negócio em nosso país tem outro valor simbólico
e de troca dentro do capital social da sociedade brasileira.
No entanto, não
acredito que um aumento salarial significativo resolvesse os problemas da educação
no país ou apontasse por si só para a sua solução. Talvez tivéssemos um
redimensionamento do valor simbólico e de troca da profissão, em especial
daqueles que trabalham no setor público, aos olhos de nossa sociedade. Isto
porque, em grande medida o problema ou os problemas da educação brasileira são
um problema de cultura, de civilização, no sentido que Norbet Elias dá a estes
termos. E uma prova cabal disso é que o ensino das escolas privadas em nosso
país também não é um ensino de qualidade, tanto nos níveis fundamental quanto
no médio, principalmente se vislumbrarmos a produção do conhecimento como ponto
fulcral de um processo educacional de qualidade. Nossas escolas privadas seguem
praticamente os mesmos programas (curriculum, diretrizes, projetos etc.) das
escolas públicas, se diferenciando apenas destas últimas por questões de
estrutura, acompanhamento docente e discente, cumprimento mais regular dos
programas, presença da família junto à escola etc. Isto se torna patente, por
exemplo, no grande fosso existente entre o ensino fundamental e médio – seja
ele feito em escola pública ou privada – e o Ensino Superior no país, em
especial aquele praticado nas Universidades Públicas, de longe as melhores do
Brasil.
Portanto, um simples
aumento salarial por si só não resolveria um problema de cultura de nossa
sociedade. Problema que tem muito mais a ver com a falência da Escola enquanto
uma instituição que ainda funciona nos mesmos moldes que a modernidade a
instituiu e que faz circular também o mesmo modelo e propósito de conhecimento
pensado pelas luzes e pela ciência positivista. Como afirma Durval Muniz de
Albuquerque Jr. a esse respeito:
Entre todas as instituições que a modernidade fez
emergir, entre todas aquelas que a sociedade disciplinar proporcionou a
constituição, a escola é uma das mais exemplares, entre outros motivos por ser
destinada à produção de subjetividades, à produção de sujeitos, à construção e
veiculação de identidades, à definição de lugares de sujeito. A escola é uma
das instituições sociais da modernidade que continua existindo entre nós,
nestes tempos pós-modernos. Instituição que ainda goza de prestígio social, se
comparada com outras instituições modernas, como o manicômio e a prisão, cada
vez mais contestados e defrontados com propostas imediatas de extinção ou
reforma radical. Ainda não se imagina a possibilidade de uma sociedade sem
escola, da mesma forma que achamos possível vivermos sem manicômios. Como é
característica das instituições sociais, a escola, quase sempre, nos aparece
naturalizada, como se sempre tivesse existido, como se não fosse uma criação
social e histórica recente, como se não fosse pensável o seu desaparecimento.
Ao mesmo tempo, vozes de todos os lugares da sociedade enunciam a crise da
escola e, como também é comum na história das instituições modernas, propõem a
sua urgente e necessária reforma.
Nesta anunciada crise da instituição escolar, um
tema que se debate, cada vez com mais vigor, é o lugar do professor. Como fica
o professor nesta realidade escolar que parece se tornar cada vez mais hostil
às suas pretensões de ensinar, de ser o sujeito da formação dos alunos? Atravessada
e sitiada por mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais diversas, a
escola e com ela a profissão docente, tal como foi definida na modernidade,
parece estar em processo de se inviabilizar, ou, no mínimo, de perder a
importância e a centralidade social que já teve. O desprestígio social do
professor, da profissão docente, talvez tenha antecedido o próprio desprestígio
social da escola, do ensino escolar, talvez tenha sido um dos primeiros
indícios de que a instituição escolar já não gozava da irrestrita legitimidade
social que ainda se acreditava possuir. Este desprestígio social do professor
não se materializa, apenas, na redução progressiva de sua remuneração, em todos
os níveis de ensino, mas no próprio desprestígio da profissão, na perda de
status, de valor simbólico da profissão na vida social.
Problemas que tem a ver
também com a burocratização e a rotinização das relações ensino-aprendizagem do
que só propriamente com questões financeiras e salariais. Invertendo um
enunciado em moda há alguns anos atrás, este último aspecto parece ser apenas a
cobertura do bolo; mas do que serve a cobertura se a base “desonerou”, está
toda esboroada, quebrada, despedaçada. Não adianta investir apenas na cobertura
se nada se faz, simultaneamente, para reconstruir ou até mesmo inventar outra
base. Pois, como afirma Albuquerque Jr. porque não pensarmos em uma sociedade
sem escolas, já que cada vez mais aprendemos por outros meios e a partir de
outros lugares. Porque não uma escola de novo tipo, fundada em outros moldes,
antenada com o nosso tempo. Esta é uma possibilidade muito pouco ou nada
cogitada em nossa sociedade. Ainda continuamos crentes na reforma da Escola, da
forma que somos sabedores de sua crise. Mas certamente não será apenas uma
melhora salarial que irá mudá-la, modificá-la e torná-la compatível com as
demandas de nosso tempo.
Certamente uma melhoria
salarial iria contribuir para uma revalorização profissional da carreira
docente e sua reinserção positiva no imaginário social, mas, também, muito
certamente, isto não surtiria um efeito imediato, como muitos pensam e
apregoam, naquilo que é o mais grave, a crise na qual está inserida o nosso
processo educativo como um todo. Pois, estes problemas têm a ver também com o
fato da profissão docente em nosso país ser uma profissão eminentemente
feminina, sobretudo no nível básico e fundamental, onde quase 80 % ou mais do
quadro é composto por mulheres. E isto tem implicações seríssimas para o
processo como um todo, em especial numa sociedade como a nossa ainda
profundamente marcada pelo machismo, pelo mandonismo das práticas paternalistas
e patrimonialistas. Práticas estas que se acentuam sobremaneira entre os nossos
gestores, em sua maioria herdeiros de uma visão além de machista,
patrimonialista e paternalista da sociedade, mas também caudatários de uma
visão personalista e patrimonialista da administração pública, um universo
ainda predominantemente masculino em nosso país. Dentro deste universo ainda
masculino, machista, personalista, paternalista, patrimonialista etc. – onde
até mesmo depois da eleição da primeira presidente mulher, continua-se a
exaltar justamente suas qualidades que supostamente a aproximariam de um modelo
masculino de gestão (a gerentona, insensível, imparcial, racional, técnica etc.)
– este perfil feminino da profissão, é pensado e visto em grande medida como um
reduto de fragilidade política, em especial nos estados e municípios governados
por homens, ou seja, na grande maioria deles.
A própria organização
sindical da categoria, na maioria dos municípios, tem também este perfil
feminino, o que torna ainda mais complicado o enfrentamento político das
questões atinentes à categoria. À medida que as lideranças sindicais femininas
são geralmente vistas pelos governantes homens como incapacitadas para o debate
e a negociação, bem como tratadas com um olhar de superioridade e desprezo por
parte de gestores municipais e até mesmo estaduais. Fato este decorrente da
ideia ainda bastante vicejada na nossa sociedade de que o espaço público, sobretudo
o das disputas políticas, o balcão de negociação é um espaço de iguais e para
iguais, é um espaço privilegiado dos homens e para os homens e, portanto, pouco
afeito às mulheres, principalmente quando estas querem colocar em questão
decisões masculinas. Um duplo acinte e afronta ao poder masculino. Boa parte de
nossos prefeitos tem uma recusa enorme em sentar para discutir com mulheres,
principalmente quando se vêm confrontados com elas e por elas. O “soberano” é
duplamente afrontado, não só na sua autoridade, mas no poder que supostamente a
masculinidade ainda lhe confere perante as mulheres. Esse é o imaginário que
ainda permeia o nosso horizonte político.
Junte-se a isto o
bloqueio cultural erguido ao longo de séculos em e por nossa sociedade que impedia,
e, infelizmente, em muitos casos, ainda impede, a reação das mulheres à
dominação e ao mando masculino e que ainda não foi derrubado de todo. Permanecendo
ainda muito forte e estabelecido em alguns setores de nossa sociedade, em
especial entre as gerações mais velhas, composta geralmente por homens e
mulheres de mais de 40, 50 anos de idade e que, se não são mais a maioria dos
docentes em sala de aula, ainda representam uma boa parte deles. Isto faz com
que esta visão machista sobre a profissão não reflita apenas um entendimento
masculino, mas também das próprias professoras, da boa parte das mulheres que
estão em sala de aula, sobremaneira, nos pequenos municípios deste país. Boa
parte delas reproduz esta visão, sendo muitas vezes indiferentes às questões
políticas que envolvem a categoria. Muito ainda por acreditarem que é um debate
e uma luta que não lhes cabe, por acreditarem que este ainda é um espaço
masculino, de homens e para homens. Talvez, isto explique, por exemplo, que boa
parte das professoras quando em momentos de reivindicação, de paralização, de
luta política explícita, prefiram ficar na sombra, cuidando dos afazeres da
casa e dos seus. Vivencio isto nos dois municípios onde leciono, São José da
Coroa Grande e Água Preta, ambos na Zona da Mata Sul de Pernambuco. O que em
maior ou menor grau não deixa de ser também uma realidade por demais presente
na maioria dos municípios brasileiros.
Outro agravante desta
situação é a inoperância e inépcia da maioria dos municípios em gerir de forma
competente os recursos destinados à educação e assim virem a promover um ensino
de qualidade. E isto decorre de alguns fatores. O primeiro e, talvez, o mais
grave deles decorre da própria estrutura político administrativa de nosso país,
diante da qual reputo aos municípios a principal responsabilidade pelo
agravamento dos principais problemas que a nossa sociedade enfrenta, sobretudo
em relação à educação. Temos milhares de municípios governados por gestores
ineptos e inaptos, sem o mínimo de boa vontade política para promover uma
gestão do dinheiro público que beneficie os anseios da coletividade ou supra
com suas demandas básicas, em especial na promoção de uma educação de
qualidade. Sem contar que na maioria destes municípios não há sequer a
construção de planos estratégicos de gestão que visem planejar as
administrações municipais a curto, médio e longo prazo. As coisas são sempre
feitas aos atropelos, sempre a base do amadorismo, do improviso e do “assar
para comer”. E desta forma os recursos são, quase sempre, geridos para atender aos
interesses político-eleitoreiros do governante de plantão, assim como para o
enriquecimento privado do mesmo e de sua meia dúzia de apaniguados e apadrinhados
políticos. Que não medem meios em fazer da Prefeitura, do patrimônio púbico e
dos recursos a ela atrelados uma extensão dos bens privados daqueles, numa
clara reprodução da cultura do jeitinho, do privilégio, do patrimonialismo e da
corrupção, que se tornou endêmica em nosso país. Atingindo de forma sistemática
a quase todos, senão a todos, os municípios da federação, em todos os níveis da
administração pública. Uma administração que vem sendo cada vez mais
privatizada por interesses individuais, familiares ou de pequenos grupos ou
setores da sociedade.
A cultura do jeitinho,
do se dar bem a qualquer custo ou à custa dos outros têm se mostrado uma cruel
realidade de nossa sociedade, principalmente quando se trata da relação desta
com a coisa pública, tida quase sempre como coisa de ninguém e que, portanto,
qualquer um pode ou poderá vir a se apossar, tomar para si, assumindo não só o
seu controle, mas, sobretudo, o direito de usufruto em benefício próprio e não
mais da coletividade. Essa ideia parece ter se tornado um cultura assentada na
grande maioria dos municípios brasileiros, e dela não escapa a gestão da
educação, justamente esta que deveria contribuir para a construção de uma
cultura em contrário. Temos inúmeros prefeitos que sequer terminaram o ensino
médio – não que diploma de nível superior seja atestado de honestidade ou um
pré-requisito indispensável para uma boa gestão da coisa pública -, que mal
frequentaram os bancos escolares e que, portanto, tem um entendimento
extremamente limitado do que é a educação, em especial dos direcionamentos e
particularidades desta questão no Brasil, nos seus estados e, o que é pior
ainda, nos seus municípios. Incapazes de discuti-la com profundidade, seja seus
problemas, seja as possíveis soluções, terminam por entregar o controle da
Secretaria de Educação a um apaniguado seu, que muitas vezes é tão inepto e
inapto quanto.
Neste sentido, o que
mais vemos em nossos municípios são secretários de educação que pouco ou nada
entendem do metier. Desconhecendo a
estrutura da educação no país, suas injunções políticas, históricas, sociais, econômicas
e culturais e as possibilidades de melhoramento qualitativo que o próprio
sistema enseja. Por incompetência e ineficiência na gestão da mesma, terminam
por reproduzir modelos educativos já prontos, sem a mínima problematização ou
criticidade, como se fossem apenas meras receitas de bolo, que servem para ser
preparadas e comidas em qualquer lugar, independente dos ingredientes
disponíveis e do gosto que vai ter o resultado final. Desconsiderando desta
maneira as particularidades, os gostos e as demandas dos lugares onde estão
inseridos. Situação que se agrava também por que a maioria dos secretários é
totalmente subserviente ao prefeito e as suas vontades, em especial no tocante
ao uso dos recursos financeiros destinados ao setor. Isto vale também para
aqueles secretários que mesmo tendo um bom nível de entendimento do processo,
conhecendo seus problemas, com capacidade de vislumbrar projetos e propostas
para equacioná-los esbarram na falta de autonomia diante do “soberano” para por
em prática as suas ideias. Sobretudo, se estas implicarem despesas acima
daquelas que o prefeito esteja disposto a custear. Em especial se esse custeio
atingir aquilo que ele considera sua, e apenas sua, cota-parte dos recursos
destinados à educação.
Um exemplo bastante claro
disto que venho descrevendo é que praticamente nenhuma Secretaria Municipal de
Educação, principalmente dos pequenos municípios, procuram por em prática um
dispositivo criado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional –
LDBEN/96, ao qual reputo uma importância fundamental para se promover o
melhoramento da qualidade da educação no país, qual seja: a criação dos
Sistemas Municipais de Ensino – SME. O que permitiria, dentre outras coisas, a
cada município do país gerir sua educação de forma autônoma – e aqui autonomia,
assim como para LDB, não significa independência, mas sim a construção de uma
relação dialógica entre a realidade local e os planos mais gerais, como, por
exemplo, a microrregião, o estado, a região, o país, tendo como parâmetro norteador
o Plano Nacional de Educação – PNE – levando em consideração as
particularidades da realidade local para a definição, por exemplo, de onde e
como aplicar os recursos, qual curriculum construir e definir de acordo com a
realidade local, que sistema de avaliação promover, etc. O mesmo vale para as
escolas e suas gestões, que também deveriam ser autônomos em relação às
Secretarias de Educação e aos secretários, definindo suas prioridades e
demandas a partir da construção dos Projetos Políticos Pedagógicos – PPPs de
cada escola. Construídos, sempre, em consonância com a realidade e interesses
da comunidade onde a mesma está inserida e não dos interesses dos secretários
ou prefeitos.
Mas, infelizmente, nada
disso funciona ou é levado a efeito em praticamente nenhum município de médio
ou pequeno porte do país, onde os gestores são nomeados e indicados pelo
prefeito, assim como toda a equipe de coordenadores, supervisores e por ai vai.
O que é feito levando-se em consideração critérios muito mais político-eleitoreiros
do que a competência e o conhecimento de quem vão ocupar o cargo e exercer a
função. A LDB dispõe, por exemplo, que para os cargos de gestão escolar
dever-se-ia ser feito eleições junto à comunidade escolar para a escolha dos
mesmos. No entanto, este dispositivo é veementemente combatido ou silenciado
pela maioria dos prefeitos e seus secretários, que temem que esses postos
estratégicos da administração pública municipal caiam nas mãos de seus
adversários políticos, o que poderia lhes causar empecilhos às manobras de
desvio de dinheiro e malversação dos recursos destinados à educação.
Desta forma o desvio do
dinheiro público, a corrupção, a incompetência, a corrupção, a má gestão da
coisa pública, tomado quase sempre como bem privado, como propriedade
particular se constituem em grandes entraves ao melhoramento da qualidade da
educação no Brasil. Mas, que em grande medida não passam apenas pela
necessidade de redimensionamentos a nível federal, como um reajustamento dos
mecanismos de controle e fiscalização dos gastos públicos com educação em
estados e municípios e uma punição mais rápida, rígida e severa para quem o
desvia, mas, sobretudo – e ai a tarefa é mais difícil, mas não impossível, pois
é um problema da cultura política brasileira –, um redimensionamento das
práticas políticas e administrativas a nível municipal, por que ainda muito
distantes da sua modernização e ainda profundamente embebidas no
patrimonialismo, no clientelismo, no nepotismo indireto, no apadrinhamento, no
mandonismo, no machismo, no paternalismo, no personalismo e ainda por cima
envoltas na nuvem sombria da cultura do jeitinho, do privilégio e da corrupção.