Impressões de um professor/pesquisador de História sobre a Educação brasileira. (Parte I)
Wagner Geminiano dos Santos
Resumo:
Este ensaio busca pensar aquilo que se convencionou chamar de educação
brasileira a partir do estabelecimento de algumas questões que julgo
estruturais e que constituem este campo do saber, no cruzamento com
outras questões mais conjunturais e pontuais que permeiam e constituem a
educação em nosso país. Todas estas questões são tomadas e pensadas
aqui a partir das minhas experiências e impressões enquanto docente. É
neste sentido que procurei preservar no texto um caráter puramente
ensaístico e de experimentação e exercício de pensamento, sem maiores
pretensões científicas. Portanto, ao longo de sua construção, dispensei o
uso de citações e referências documentais ou bibliográficas. No
entanto, isto não impediu que sua escrita estivesse atravessada por
inúmeros pensamentos e autores que o leitor mais atento logo
identificará. E, por isso mesmo ele não é fruto apenas de meu esforço
intelectual individual, mas é resultado da relação com inúmeras vozes e
discursos, aos quais busquei deixar no anonimato, na tentativa de
construção de uma espécie de memorial daquilo que entendo como sendo a
educação brasileira no cruzamento de minha formação como professor,
historiador e cidadão.
Palavras-chave: Educação brasileira, universalização, professor, escola, discente.
Gostaria,
neste texto, de pensar e discutir alguns dos aspectos que julgo
problemáticos naquilo que se sensocomunizou chamar de “Educação
brasileira”, em especial no seu nível básico, hoje chamado de Ensino
Fundamental. Tentarei fazer isto percorrendo o seguinte caminho:
primeiro, abordarei aqueles aspectos mais gerais e estruturantes que
formam, a meu ver, a espinha dorsal desta área do saber e das
instituições a ela correlatas; em seguida procurarei pensar algumas
dimensões mais conjunturais, que dizem respeito ao momento em que
estamos vivendo, às práticas políticas, econômicas, sociais e culturais e
às políticas públicas para educação atreladas ao processo educacional
do país; por fim, de forma mais particular, tentarei pensar este
processo a partir do ensino de história e da minha experiência docente
em alguns municípios do interior de Pernambuco. Farei este esforço na
tentativa de construção de uma espécie de memorial daquilo que entendo
como sendo a educação brasileira no cruzamento de minha formação como
professor, historiador e cidadão.
Para
iniciar esta discussão, quero problematizar um enunciado que reverbera e
ressoa praticamente em todo o corpo social de nosso país e que parece
contribuir substantivamente para a imagem profundamente negativa que os
profissionais da educação têm no Brasil. É o enunciado que coloca o
processo educativo como missão, como sacerdócio e o professor como
aquele que fez os votos e abraçou a causa – jesuítica, por sinal -,
antes de tudo por amor e compromisso de fé do que por qualquer outra
coisa – muito menos dinheiro, na forma de bons salários, claro; pecado
mortal da profissão. Neste sentido, ao longo dos anos, fomos alçados a
condição de mártires, de redentores, de salvadores da pátria e
construtores da nação – talvez por isso se explique o sucesso algumas
utopias, ou melhor, de alguns discursos idealistas, que mais parecem
literatura de autoajuda, vide o sucesso de Augusto Cury entre os
educadores, ou as duas coisas ao mesmo tempo, e porque não
salvacionistas ainda presentes em nosso meio e a fazer grande sucesso e
estardalhaço vendendo livros e mais livros. Este campo do saber talvez
seja o único onde este tipo de discurso ainda produz efeitos de verdade
sobre os pares, confluindo para uma larga produção científica pautada
por estes enunciados.
Este
enunciado que diz que o verdadeiro professor, o educador, na acepção
ampla da palavra, é aquele que exerce a profissão por amor, por devoção a
uma causa, por compromisso a uma missão. Ou seja, o professor antes de
ser um profissional, alguém que trabalha para ser reconhecido e
valorizado por suas práticas profissionais e intelectuais, seria um
altruísta nato, alguém que se doa completamente, de corpo e espírito, a
sua missão, pois é nesta que a priori já se encontra o reconhecimento e o
valor do que fazem; enfim, o reconhecimento e o valor não estariam no
professor e nas suas práticas profissionais cotidianas, mas já estariam
definidos a priori na missão que escolheram defender, a princípio, de
corpo e alma. Mas alma, espírito e intelecto do que corpo, pois neste
discurso o professor parece não ter corpo – portanto, não precisa comer,
vestir, se divertir, descansar, neste sentido não necessita de bons
salários, de férias, de descanso, podendo trabalhar diuturnamente em sua
missão –, quando muito ele aparece apenas como ferramenta para a
realização de sua missão; corpo assexuado, como o dos anjos, a proteger a
humanidade em nós ou a tentar, cristamente, construir a humanidade em
nós. Corpo macerados por uma árdua jornada de trabalho – três
expedientes, muitas vezes –, mas sempre resignado, pois expiando e
remindo não só os seus pecados, mas, sobretudo, os pecados do mundo da
sociedade.
O
trabalho do professor, assim como no discurso cristão da culpabilização
do homem pela queda, serviria para expiar o pecado da ignorância que
deixou o homem em queda, seria o meio para se conseguir alcançar a
salvação da nação, do todo social elevando-a aos píncaros da civilização
e do progresso social e humano. O Professor, este ser transcendental,
um misto de Cristo e anjo de luz decaído dos tempos pós-modernos,
assexuado, quase sem corpo, seria o redentor de nossa sociedade, de
nosso tempo. Daí o discurso que diz que a educação é o único caminho e
solução para a nossa sociedade, discurso este profundamente repetido e
alardeado aos quatro ventos em nosso país pelos diferentes setores de
nossa sociedade numa reedição pós-moderna da passagem bíblica “eu sou o
caminho, a verdade e a vida”.
Deste
enunciado decorre, a meu ver, outro problema gravíssimo de nosso
processo educativo, qual seja: o discurso religioso e cristão que se
encontra profundamente arraigado e constituindo ainda as bases das
práticas educacionais da maioria de nossos professores e professoras –
façamos aqui uma distinção de gênero, pois o professor além de ter
corpo, ele é investido de um gênero que interfere consideravelmente nas
suas práticas educativas e, sobretudo, na educação básica de nosso país,
onde a maioria do quadro docente é composta por mulheres, mas
trataremos disto mais adiante -, apesar de nosso Estado se dizer laico e
propor também uma educação assentada nestas características e
preceitos.
Discurso
cristão este que norteia em grande medida as concepções salvacionistas
que permeiam boa parte das obras que buscam discutir a educação em nosso
país. Num Estado que se quer ou que se diz laico e que deveria,
portanto, fazer da educação e do processo educativo um meio para
realizar este fim, isto parece não acontecer. Pois, cada dia mais as
práticas educativas de boa parte dos professores se encontram
cristianizadas e prontas a cristianizar, a doutrinar, fazendo do
processo educativo algo muito parecido com uma prática de catequização.
Isto se explicita, principalmente, quando o docente quer impor certa
verdade aos seus “discípulos” e estes o contestam, reagem contra sua
assertiva. Diante de tal recusa, a reação da maioria dos docentes
caminha, quase sempre, para a pregação culpabilizadora, para o discurso
religioso moralizante utilizado como arma educativa e disciplinadora
diante do antigo discípulo transformado em herege.
Mas,
me tranqüilizaria muito se o efeito deste discurso fosse apenas este –
talvez o mais banal deles. No entanto, as coisas tendem a ser muito
piores, descambando, na maioria das vezes, para o preconceito, para
posturas, conservadoras e facistas de negação do outro. Ao longo da
minha carreira docente – que ainda não é longa, diga-se de passagem – já
presenciei cenas estarrecedoras, sendo legitimadas e justificadas por
este discurso educativo-religioso.
Desde
gestores que, para repreenderem seus alunos, diante de supostas
atitudes incorretas dos mesmos, se utilizam e tomam o discurso moralista
religioso como pedra abalizadora das atitudes dos discentes sejam elas
quais forem e que sentido for, proferindo impropérios do tipo: “suas
atitudes não fazem parte da criação divina, não faz parte das coisas de
Deus, Ele condena tudo isso”, “Deus não criou seu filhos para a
prostituição, para a marginalidade, para a homossexualidade, portanto,
sejam bons alunos, respeitem o professor para ser alguém na vida, porque
Deus condena que quer cair na marginalidade, e ele é nosso Pai
salvador”.
Até
professores que por puro despreparo e desconhecimento diante de temas
candentes de nosso tempo como as drogas, as práticas homossexuais,
homoeróticas, homo afetivas, a prostituição e outros mais se ancoram na
muleta do moralismo religioso para se esquivarem do debate e se eximirem
de tratar de tais assuntos. E quando o fazem, o fazem a partir do
ângulo religioso, moralista e cristão, disseminado o preconceito e ódio
ao diferente, ao outro. Neste sentido, já presenciei vários colegas
professores argumentando que não tratam destes temas com seus alunos
porque o consideram não natural, em especial em relação ao
homossexualismo, pois o consideram não fazendo parte da criação divina.
Já escutei de colegas até que por o considerarem não natural acreditavam
que o homossexualismo seria uma doença e que deveria ser encarado como
tal, com o objetivo de sanar a epidemia que assola a nossa sociedade
nesses dias de pós-modernidade, ou seja, alguns de meus colegas, mesmo
no papel de educadores, continuam vendo alguns temas e tratando-os como
se estivessem fora da norma, fora da curva; enfim, como uma anormalidade
dentro dos desígnios da criação. Pautam-se assim embasados não só por
um discurso moralista religioso, mas também retomam um discurso médico
já contestado e posto em cheque desde a década de 60 do século passado
pela própria ciência médica.
No
entanto, este discurso religioso-cristão que se imiscuiu e se insinua
nas práticas educativas de boa parte dos docentes em nosso país
(re)produz uma série de outros preconceitos e práticas conservadoras
dentro de sala de aula, sobretudo em relação a outras religiões e
culturas e contra quem as pratica, assim como contra quem não é
praticante de nenhuma religião ou que não professe nenhuma fé. Neste
sentido, assistimos quase que cotidianamente a justificação e a
legitimação das práticas religiosas cristãs e seus dogmas – católicos ou
protestantes – como verdadeiros, superiores, em especial em relação às
religiões de origem afro.
Isto
se torna mais enfático ainda em escolas que têm a disciplina de
Religião sendo lecionada. Ao lecionarem esta disciplina a maioria dos
professores ensinam muito mais os dogmas e práticas cristãs – católicas
e/ou protestante –, fazendo proselitismo religioso – o que é vedado pela
LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) – do que
estabelecer uma discussão substancial e profunda sobre a própria idéia
de religião, as múltiplas possibilidades de expressão da fé e do crível,
a diversidade de possibilidades de abordagens e de visões de mundo
propiciadas pelas diversas religiões. Neste sentido, esta disciplina é
ensinada de forma a justificar e legitimar uma única religião possível e
verdadeira, o Cristianismo, católico ou protestante, tendo em vista que
nem os fundamentos teológicos e filosóficos básicos desta religião são
discutidos, mas apenas apresentados como verdades absolutas e eternas. A
disciplina de religião, onde ela é praticada, não serve para ensinar,
mas para doutrinar os alunos nas práticas cristãs, com a escola se
colocando desta maneira como uma extensão da Igreja, católica ou
protestante, e as aulas aparecendo mais como uma extensão das aulas de
catecismo ou das escolas dominicais. Fora disso só existiria erro,
heresia, demonização.
Assim,
a maioria de nossas escolas e seus docentes fica restrita a visão
cristã de religião e ao Cristianismo como única religião praticável
dentro daquilo que é aceito como normal, verdadeiro e absoluto.
Propagandeada pela maioria dos professores como a única visão e crença
possível, afirmando-se sobre as outras religiões a partir da demonização
e negação das mesmas, de sua adjetivação como algo demoníaco, inferior,
baixo, marginal. Não só estas outras religiões, mas também os seus
praticantes e práticas seriam de outra esfera, a esfera do negativo, do
mal, do desvio que atingiria aquele não só em espírito, mas no seu
caráter, na sua moral, no seu ser. Reproduz-se assim uma cultura de
intolerância e preconceito que se acentua ainda mais quando o que está
em questão são as religiões e culturas de origem afro – apesar da Lei nº
10.639 que institui o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas de
ensino fundamental e médio com o objetivo de quebrar com estes
preconceitos –, por motivos óbvios, aos quais a maiorias de nossas
escolas e docentes fazem vista grossa e ouvidos surdos, pouco
contribuindo para se romper com o preconceito por contra estas religiões
e seus praticantes, reproduzindo-o ao invés de questioná-lo em suas
raízes. Quando muito as nossas escolas fazem uma leitura destas
religiões e de suas culturas e praticantes que beira o pitoresco, o
folclórico, o estandardizado tratando-os como o exótico, o estranho, o
fora da norma; o que só contribui para alimentar o preconceito e a
exclusão.
Esta
imagética que se criou em nosso país sobre os docentes e suas práticas
parece ser ainda resquício da própria história da educação no país e de
como ela foi praticada e exercida ao longo dos séculos. Entregue desde o
início da colonização a Igreja e mais especificamente aos Jesuítas,
nosso processo de educação das “massas” esteve, desta forma, quase
sempre ligado aos ideais missionários e sacerdotais, de desprendimento
das coisas do mundo, ligado ao ideal catequético-civilizador cristão que
se impunha a partir do princípio da negação do outro e de suas práticas
culturais – o índio, o africano e suas religiões e culturas. Mesmo
depois das reformas pombalinas no século XVIII e as tentativas de
expulsão dos jesuítas da América Portuguesa e a ascensão do Estado como
garantidor de uma educação laica, o nosso processo educacional nunca se
encontrou de um todo dissociado das práticas cristãs, pelo contrário,
varou os séculos atravessado pelas mesmas, constituindo a educação
brasileira claramente numa experiência fundada e pautada por práticas
cristãs ortodoxas e conservadoras.
Tendências
educacionais como a Escola Nova ao tentar se estabelecerem em nosso
país tiveram de fazer este enfrentamento, ainda no início do século XX,
às práticas educacionais de cunho cristão, não só no ensino, mas também
na própria estrutura e concepção de educação no país. Enfrentamento este
que ainda não conseguiu por fim a estas práticas, mas que vem
convivendo com elas até nossos dias, mesmo depois do processo de
redemocratização do país e a laicização do Estado brasileiro sob um viés
constitucional e cidadão, outorgado pela Constituição de 1988. Mesmo
assim, aquelas práticas continuam profundamente arraigadas no cotidiano
escolar e atreladas às práticas docentes de boa parte de nossos
professores, se constituindo, assim, como um sério problema de nosso
sistema educacional que precisa ser enfrentado urgentemente, mas que
infelizmente pouco se fala e quase ninguém se pronuncia ou se posiciona a
respeito.
Um
segundo aspecto do processo educacional brasileiro que precisa ser
urgentemente considerado e pensado e que também pouco se faz ou se fala a
respeito, é o processo de universalização do ensino no país, como ele
foi iniciado, em que moldes e como ele vem sendo levado a efeito.
Processo este iniciado do dia para a noite e sem considerar o contexto
histórico, social, cultural, político e econômico de nosso país e que,
por estes e outros motivos – que passarei a elencar de agora por diante –
se constitui num dos maiores entraves para construir uma educação de
qualidade no Brasil.
O
nosso processo de universalização do ensino – fundamental e médio – é
bastante tardio e ainda não se realizou por completo, principalmente em
relação àquilo que se chama de ensino médio. No entanto, ele começou a
ser levado a efeito nos últimos anos do período da Ditadura Militar e
buscou consolidar-se a partir do processo de redemocratização do país já
na década de 90 do século passado. Contudo, isto foi feito a toque de
caixa, tentando romper com o atraso e com um processo secular de
exclusão que caracterizavam nossa educação. Processo este feito quase
sempre a partir de modelos importados dos EUA e da Europa e que foram
transplantados para a nossa realidade sem ao menos se considerar nossas
particularidades históricas, sociais, culturais, políticas e econômicas.
Desconsiderou-se
completamente, por exemplo, o fato de que vinhamos de um processo
educacional excludente, fundado numa educação de cunho religioso,
cristão e autoritário e que se fazia direcionada quando muito às classes
médias e as elites do país. O nosso processo civilizador, para utilizar
uma expressão clara a Norbet Elias, quando muito atingia as nossas
classes médias, civilizadas ainda muito mais dentro de ideias
conservadores cristãos e católicos do que propriamente nos moldes
laicos, burgueses e capitalistas que dispõe a ideia de meritocracia,
competitividade e individualismo como pedras balizadoras e princípios
básicos de uma educação laica.
Neste
sentido, até a década de 70 e 80 do século passado, a educação, fosse
ela pública ou privada, se constituía no direito de uma minoria. Onde,
diante disso e apesar da parca estrutura, a superlotação das salas de
aula não se constituía em um problema grave da educação do país, naquele
período. Assim como o que chamamos hoje de indisciplina não se
apresentava como percalço para docentes e gestores. Pois, a educação se
fazia para uma parcela da sociedade que a via e percebia como um dos
meios para manter, senão superdimensionar e consolidar, sua posição
dentro desta sociedade. A educação era significada como elemento
definidor e legitimador do status quo,
sobretudo ao longo do período da Ditadura Militar. E em grande medida
era assim que ela era vista e significada por aqueles que frequentavam
os bancos escolares. Pois, uma educação pensada para reproduzir o modus vivendi e o habitus
elitista e classe média em nosso país. Assim, o processo educacional
brasileiro se conformava e se constituía correlato ao processo
disciplinar e civilizador desta parcela de nossa sociedade e aos seus
anseios políticos, sociais, econômicos e culturais.
Mas,
este cenário se altera profundamente com o processo de universalização
do ensino iniciado entre finais da década de 1970 e a década de 1980. A
medida que praticamente do dia para a noite são jogados dentro das
poucas escolas públicas construídas no país milhares e milhares de
crianças e jovens, sem que ante tenha havido qualquer preparação por
parte das entidades federativas (União, estados e municípios) para
acolher tal demanda e a diversidade que ela ensejava em uma
infraestrutura já deficitária. Era necessário ter havido a construção de
novas escolas – mas não só isso –, a distribuição de livros e materiais
didáticos, a contratação imediata de novos professores, assim como a
capacitação dos mesmos e a qualificação dos que já faziam parte do
quadro para atender este novo e variado público. Nada disso foi feito ou
considerado a tempo. Contudo, a cada ano a demanda só fazia crescer e
se multiplicar.
Decorrente
disto, não houve um investimento imediato por parte do Estado na
formação dos professores para que eles fossem “adaptados” a nova
realidade das salas de aula criada por esta demanda crescente que bate a
todo dia a porta das escolas em todo o país. Pessoas de classes sociais
distintas daquelas a que as escolas públicas estavam acostumadas a
atender, mas que se vê obrigada a fazer a inclusão, juntando-os,
misturando-os com os antigos alunos classe média e das elites locais,
fomentando na inclusão uma exclusão social cada vez mais gritante,
exacerbando as distinções e diferenças sociais entre o filho do pobre e o
estudante riquinho de classe média ou filho do mandatário ou do grande
comerciante local. Incluir para excluir, para marcar a diferença – e
isto se explicita em comportamentos que vão se tornando quase que
naturais, como a preferência dos professores pelos filhos geralmente
branquinhos, limpinhos, “educados” das famílias de classe média ou das
elites em detrimento do olhar torto, reprovador diante do mestiço, do
negrinho filho do pobre, geralmente empregado daquelas famílias que
agora tinham de conviver no mesmo espaço e que ao menos legal e
teoricamente tinham de ser acolhidos e tratados com isonomia.
É
sob este signo que se inicia o processo de universalização do ensino no
Brasil. Milhares de pessoas, passos, pernas e corpos diferentes,
diversos, divergentes se dirigindo, dia após dia em maior número, às
escolas. Fruto de realidades diversas, variadas, marginais com as quais a
maioria dos professores e a própria escola não estava habituada ou
acostumada a lidar. Como esta escola se torna um ambiente difícil,
excludente para grande parte deste novo público também pouco acostumado
com ela, com suas regras, com seu modus operandi,
e isto se traduziu por muito tempo nos elevados índices de evasão, de
desistência deste público em continuar num espaço em que eles pouco
tinham espaço, a não ser como corpos deslocados.
Corpos estes constituídos em um modus vivendi
diferente e diametralmente oposto àquele que a maioria dos professores
estava acostumada a lidar. Corpos rebeldes, não educados, não
civilizados no modo de vida burguês, capitalista ou até mesmo
cristão-conservador, vindos de um caldo cultural ante e anti
capitalista, como costuma dizer o antropólogo José Carlos Rodrigues.
Corpos com os quais a maioria dos professores não sabe como trabalhar,
não sabem o que fazer ou como proceder. Professores que até então eram
pensados assexuadamente – as “tias”, estes seres assexuados, que nem
famílias conseguiram constituir, a não ser àquela que abraçaram na sua
missão, imagem esta a muito cristalizada sobre as professoras, tendo em
vista que esta era até bem pouco tempo atrás uma profissão eminentemente
feminina, em especial nas séries iniciais e no que hoje se chama de
ensino fundamental – como pessoas compostas apenas de intelecto, se vêm
diante de uma multiplicidade de corpos com a sexualidade a flor da pele,
que se expressam pela violência dos gestos e das palavras. Fruto de uma
visão de mundo, de uma cultura e de relações sociais forjadas na base
da violência, da sexualidade aflorada e explicitada cotidianamente sem
grandes pudores.
Afinal,
os corpos que todos os dias adentram as salas de aula de nosso país, em
especial das escolas públicas, forma talhados e trabalhados num espaço
social onde a distinção do público e do privado ainda não se fizeram
sentir como nos espaços de classe média e de elite. Espaços domésticos
que condensam, muitas vezes, no mesmo ambiente o quarto, a sala, a
cozinha, o banheiro, expressando desta forma uma medievalidade dos
costumes ainda bastante presente nos dias atuais. Os alunos que batem a
porta de nossas escolas estão, quase todos eles, acostumados a ver e a
presenciar a violência entre os pais ou entre os parceiros de seus pais
ou mães. Acostumados desde cedo a verem as práticas sexuais de seus pais
ou responsáveis de forma explicita, escancarada, dada a falta de
privacidade na maioria das moradias em que os mesmos habitam. Quando não
com os pais, com os animais de estimação ou de criação, cães, gatos,
porcos, caprinos, equinos, bovinos, asininos, com que muitas vezes se
iniciam sexualmente, em especial os homens.
Conhecedores
desde cedo das mazelas da violência física e psicológica, do encontro
precoce com o sexo, com as drogas, com a violência doméstica. Marcados
perla necessidade e pela busca diária por sobrevivência num mundo onde
palavras como educação, meritocracia, civilização pouco parecem fazer
sentido aos seus ouvidos. São geralmente estes corpos assim talhados que
começamos a ter dentro de nossas escolas a partir do início do processo
de universalização do ensino no país.
E como a maioria dos professores, senão todos, estava – e ainda estão – despreparados para “educa-los”, “civiliza-los” – dificuldade esta que atribuo à rebeldia, à resistência a um dado modelo civilizador, a um dado habitus
que querem lhe impor numa estratégia aculturante – tomam esta rebeldia,
esta revolta como indício de uma indisciplina profunda e incorrigível,
ou melhor, de uma falta de disciplina, de educação. E por isto passam a
ser vistos quase como não humanos, tratados quase como animais, como
bestas humanas destituídas de sua alma, de sua essência, daquilo que os
tornariam humanos. Enfim, a escola e boa parte dos professores parecem
querer negar e lhes extirpar àquilo que é mais humano naqueles corpos,
como diria Nietzsche, o que lhes é humano, demasiado humano: a
violência, o sexo, o desejo, a revolta, a resistência. Com esta postura,
escola e professores, buscam, antes de tudo, se afirmarem como
melhores, como superiores, pois supostamente pautados por valores
civilizatórios, portanto ocupando outro estágio de, mais avançado, mais
evoluído, no processo civilizador. Dai poderem justificar a sua boa
consciência. A boa consciência daqueles que tentaram humanizar e
civilizar aqueles que se recusam a sê-lo.
Diante
de uma consciência tranquila, embalada pelo argumento de quem tudo fez e
faz, diante de todas as dificuldades possíveis, para educar as “massas”
incultas, tanto a Escola quanto a maioria dos profissionais a ela
ligado pouco para ou nunca param para pensar e problematizar que o mundo
que eles oferecem a este público é um mundo insignificante e sem
sentido, destituído de qualquer capacidade mobilizadora para uma maioria
que só conhece como realidade imediata a violência, a privação, os
prazeres do sexo, o delírio oblíquo das drogas, a libertinagem de uma
vida sem fronteiras, sem limites e sem um conjunto de regras muito
claras, a não serem aquelas determinadas pela necessidade da
sobrevivência diária, cotidiana. Justamente porque são vidas que vivem
nas fronteiras, no limite da vida e da morte, da sobrevivência, da
privação, da marginalidade, da exclusão. Daí sua rebeldia, sua revolta,
sua “indisciplina”.
Indisciplina.
É por este ângulo que a Escola e boa parte dos docentes, senão todos,
enxerga e nomeiam o comportamento deste novo público que acorre todos os
dias à sua porta. Pois, tomam o seu mundo, os seus critérios como
abalizadores do outro. Neste sentido, a Escola os enxergam e os nomeiam
pelo negativo, pela falta, como corpos e pessoas que precisam ser
educados, disciplinados, civilizados, pois, supostamente, estas
características lhes faltam. São pessoas mal educadas, indisciplinadas,
rudes, ignorantes, torpes, fora da norma. Talvez, por isto, muitos
professores, em especial àqueles a mais tempo na profissão e alguns
novatos também, sejam saudosos dos métodos tradicionais de ensino, ou
melhor, dos castigos e da palmatória como meio de educar e disciplinar o
outro.
Não
enxergam que se possível fosse retornar àqueles métodos, eles não
funcionariam, não surtiriam os mesmos efeitos de poder e de verdade de
outrora, pois o público e os corpos a que eles se destinariam são
outros. Como dito anteriormente, temos agora em nossas escolas uma
maioria de corpos talhados na e pela violência física e simbólica do
dia-a-dia, e que, por isso mesmo, são rebeldes, resistentes ao castigo,
ao disciplinamento, a punição. São corpos encarapaçados pelo tempo, pela
constância da violência de onde nasceram e estão a crescer e a se
constituir enquanto humanos. São, portanto, corpos bastante diferentes
dos corpos classe média com os quais a maioria das escolas privadas de
nosso tempo costumam trabalhar e que já fora num passado não muito
distante o principal e majoritário público das escolas públicas.
Estes corpos classe média, são corpos com outros habitus,
vindos de um mundo e constituídos por uma visão do mesmo, totalmente
distinta dos deste novo público de massas. Talhados geralmente por uma
forte moralidade religiosa cristã desde a infância; crescendo já
marcados pelo signo do afastamento entre os corpos, contornados por
reservas morais, físicas e psicológicas tanto em relação ao sexo quanto
em relação à violência. Corpos para os quais o castigo e a punição
funcionam como humilhação, como signo do fracasso em não conseguir
governar os “excessos” do próprio corpo, enfim, como mecanismo
disciplinador e contingencioso de práticas tidas como anormais
utilizadas pelos pares quando o próprio indivíduo não consegue, por sí
só, se governar. Significações estas que não ressoam sobre e entre este
novo grupo, acostumado no seu cotidiano a lidar de forma bastante
naturalizada com os castigos e as punições, que antes de serem vistos
como tais, como práticas humilhantes, corretivas, disciplinares aparecem
muito mais como práticas normais, naturais, parte integrante de suas
vidas e realidades cotidianas.
Basta
observar como estes corpos se comunicam, como tratam uns aos outros.
Com tapas, socos, chutes, ponta pés, empurrões etc. E quando
repreendidos por algum professor desavisado, saem com a máxima: “é só
brincadeira, professor”; para perplexidade da maioria dos docentes. O
paradoxo está justamente no fato de que os docentes, ou a maioria deles,
ainda não se deu conta que a violência é uma linguagem, sobretudo, uma
linguagem que está inscrita e inscreve a subjetividade destes e para
estes corpos, ou melhor, a violência é a sua linguagem, a mais
significante, a mais explicita e utilizada para sua expressão. Pois, foi
nesta linguagem que eles foram talhados e educados e é por meio dela
que se expressam de forma mais emblemática: nos gestos, nas relações e
até mesmo nas palavras que usam para significa-la, todas elas carregadas
de violência, de erotismo, de pulsões desejantes.
E
diante desta linguagem a Escola enquanto instituição encontra-se
totalmente perdida, desorientada e sem rumo. Isto porque o modelo que
temos de escola ainda é aquele pensado pela modernidade e voltado para
atender as necessidades e demandas daquilo que Michel Foucault chamou de
sociedade disciplinar. Uma escola que ainda tem como modelo o exército e
a prisão, na sua posição arquitetônica, e a fábrica e o hospital, no
seu modelo gerencial. Este modelo já não atende mais as demandas de
nosso tempo, de uma sociedade pós-disciplinar, pós-industrial,
pós-moderna para muitos.
Temos
ainda uma escola pensada arquitetonicamente como prisão, com portões,
grades, cadeados, composta de salas quadriculares dando, geralmente, ou
para um corredor ou para um grande salão central de onde se pode, por
seus corredores, passar em revista todas as salas, de onde todas elas
podem ser observadas ao mesmo tempo. Uma escola ainda pensada como
fábrica, com horários a serem rigidamente cumpridos, regularmente
observados ao longo de um árduo ano de trabalho – a educação dos bancos
escolares é apresentada com a mesma obrigatoriedade do trabalho – com
feriados, folgas, recessos e férias predeterminados por gestores, que
mais parecem patrões – dada a cobrança por resultados, metas, objetivos,
etc. –, com toques de sirene que determinam o horário de entrar e sair,
de recrear, de ter o intervalo antes da volta do trabalho – afinal, o
estudante também é visto como um laborador intelectual em
desenvolvimento.
Uma
escola que tem de seguir todo um planejamento gerencial, imposto de
cima para baixo, segundo uma hierarquia previamente definida. Uma escola
que é regida como hospital a partir da prática da catalogação daqueles
que fazem parte do seu corpo, da sua separação, da sua seriação e
segmentação pelo mecanismo da ficha, das anotações, pelo exame contínuo e
regular das atividades docentes. Uma escola ainda pensada como caserna,
como exército, com seus alunos rigidamente sentados, enfileirados lado a
lado, do menor para o maior, por horas a fio, diante da lousa e do
mestre.
É
este tipo de funcionamento de nossas escolas que encontra uma
resistência tamanha nos nossos dias. Este é cada vez mais um modelo
falido, que a cada dia só faz comprovar sua falência diante da
resistência e inquietude dos corpos que se negam a serem disciplinados e
esquadrinhados dentro dos muros desta prisão-escola que mais parece um
Frankenstein paralítico, postado diante de nosso tempo e das práticas
sociais, culturais e políticas dele constitutivos, murmurando palavras
sem sentido.
São
escolas inadequadas do ponto de vista de sua estrutura física, que não
oferecem salas de aula suficientes e adequadas para atender a demanda
deste novo público e para estes corpos outros. Escola que assim como os
nossos presídios encontram-se abarrotadas, superlotadas aumentando ainda
mais o processo de produção da “delinquência”, da “indisciplina” ou
aquelas práticas que só conseguimos nomear com estes termos, por até
mesmo no campo da linguagem ainda estarmos limitados por uma
conceituação e um vocabulário educacional, sobretudo no cotidiano
escolar, que há muito não consegue mais ver e dizer o nosso tempo. Um
léxico de milhares de expressões, reproduzido e multiplicado aos quatro
ventos, mas que nada diz sobre nossa condição, que não a significa mais,
que parece expressar tão somente o silêncio e a impotência de nossas
palavras e a surdez de nossos ouvidos diante de falas, práticas e ruídos
que ecoam de dentro das salas de aula e que a Escola ainda fundada em
linguagem moribunda não consegue sequer escutar, quanto mais compreender
e dialogar com ela. Tem sobre este público e seu murmúrio apenas uma
linguagem e um discurso insignificante que a cada dia que passa vai
ficando mais mudo, oblíquo, afônico.
Temos
ainda uma instituição escolar fundada em práticas e procedimentos
disciplinares que só constituem e enquadram aquilo que está na norma ou
que é visto enquanto tal. Uma Escola, em sua maior parte, incapaz de
lidar com o diferente e a diferença que a todo dia bate sua porta.
Incapaz de compreender a diversidade imanente ao seu público, muitas
vezes pensado por ela como homogêneo. Escola que, depois de iniciado o
processo de universalização do ensino, se quer inclusiva, mas que cada
vez mais opera por exclusão. Como diz Alfredo Veiga-Neto, é uma escola
que inclui para excluir, que inclui para marcar claramente os lugares do
normal e do anormal, do educado e do não educado, do incluído por ser
igual e do excluído por sua irredutível diferença. Uma escola que ainda
trabalha para reduzir homogeneizar comportamentos, para educar mentes e
corpos dentro de um modelo civilizador pensado como único e verdadeiro,
no qual a diferença só encontra sentido como exceção e confirmação a
regra civilizatória e disciplinar. Como elemento justificador e
legitimador deste processo educacional visto e imposto como necessário
para a constituição da ordem, do progresso, do desenvolvimento do
indivíduo em particular e da sociedade no geral. Indivíduo quase sempre
pensado como peça do social, que deve ter as arestas de suas diferenças
aparadas para se encaixar harmoniosamente no todo do corpo social.
Uma
escola totalmente despreparada para os conflitos e tensões que são
inerentes ao corpo social. Que não enxerga outra saída para ele que não
seja a punição, a interdição. Isto porque se encontra cada vez mais
isolada do corpo social. Isolamento político, social, cultural. Sua voz,
seu discurso não reverberam mais na sociedade, não produz mais os
efeitos de verdade que a modernidade requeria da mesma. Isto parece
ocorrer em grande medida porque modernamente a Escola ainda se pensa
como lugar privilegiado de reprodução e circulação do saber em nossa
sociedade. Desconhecendo ou tornando-se indiferentes aos inúmeros outros
lugares de produção e circulação do sabe em nosso tempo. Como, por
exemplo, os conglomerados midiáticos e as diferentes mídias operadas por
eles (TV, jornais, jogos eletrônicos e, sobretudo, a internet), a
publicidade, o marketing, as religiões e as igrejas, os círculos de
amizade, a comunidade, a rua etc. Lugares nos quais o saber é não só
aprendido, reproduzido, mas, sobretudo, construído, praticado,
experimentado diferentemente do que ocorre na maioria das escolas de
nosso país, onde o saber é muito mais reproduzido do que socialmente
construído em meio às demandas culturais, políticas e econômicas do
lugar onde a mesma está inserida e onde seu público habita, mora, vive.
Uma
escola que desconhece quase que por completo a comunidade em que está
inserida e que quando a conhece pouco faz para entrar em contato com
ela. Se resguardando muitas vezes no pseudo argumento e na falácia de
que a mesma está e sempre esteve de portas abertas para a comunidade e
que esta é quem não procura àquela. Quando muito a Escola entra em
contato com a comunidade nos encontros de pais e mestres e nos plantões
pedagógicos, que funcionam muito mais como instrumentos de desencargo de
consciência da própria Escola, para ela poder dizer tranquilamente “fiz
minha parte”, do que como uma prática afetiva para estabelecer um
contato mais profícuo e duradouro com a comunidade.
Encontros
estes, quase todos eles, esvaziados pelos pais e pelos próprios alunos
que observam nestes momentos apenas eventos nos quais os professores e a
equipe gestora encontram para mais uma vez reprovar o comportamento dos
seus filhos e, por consequência, a sua atuação enquanto pais – pais e
mães que o são a partir de outros modelos, de outros modus vivendi
– ou responsáveis por aqueles. Momentos em que a Escola faz a sua
sessão de terapia e desencargo de consciência procurando afirmar para si
mesma que está a fazer alguma coisa, que está cumprindo com o seu papel
na tentativa de educar os filhos dos outros de e para a nossa
sociedade.
A
Escola enquanto instituição precisa não só estar com as portas abertas à
espera da comunidade, mas precisa antes de tudo começar a se relacionar
com ela, se inserir em seu meio para conhecer as suas demandas, os seus
anseios, as suas necessidades. Para entender a sua linguagem, que
parece desconhecer por completo. A Escola precisa parar de fazer de
conta e reconhecer sua atual impotência e inoperância diante da
comunidade em partícula e da sociedade no geral. É preciso que ela saia
de dentro de seus muros e vá conhecer a sociedade e a comunidade em que
está inserida. Mas que vá desarmada, sem se o direito daquele que detêm o
conhecimento autorizado e, portanto, que se insinua como superior
diante do mundo e das coisas, diante do outro. A escola tem de perceber
e, sobretudo, admitir que não conhece a comunidade e que urge conhece-la
para saber de sua demandas, de sua necessidades, para a partir daí
traçar estratégias para uma relação mais próxima, menos impositiva e
mais democrática e multifacetada. Além do mais, a Escola precisa se
fazer reconhecer, construir para si novos significados, o que não pode
mais fazer sozinha ou apenas a partir de instancias superiores; mas, sim
em relação com a sociedade na qual se insere. A Escola precisa ser
investida de novos significados e sentidos construídos em conjunto e
partilhados por ela e pela comunidade em particular e pela sociedade em
geral.
Mais
do que nunca parece necessário construir uma Escola significante
socialmente. Porque a que temos hoje está vazia de sentido e não cumpre
com o processo de universalização a que se destina e muito menos com o
projeto de educação a que se arvorou desde o início da modernidade. E
para tanto é preciso que a Escola entenda de uma vez por todas que ela
não é mais o locus
privilegiado da sensocomunização do saber em nossa sociedade. A nossa
sociedade, hoje, independe da Escola para conhecer. E isto explicita
claramente o esvaziamento de sentido do referencial significante sobre o
qual ela esteve pautada. Se a sociedade não precisa mais da escola para
conhecer, esta perde totalmente o seu sentido e a função social
construída para ela ao longo da modernidade. Ainda por cima, o
conhecimento que ela oferece parte em grande medida de um ideal
meritocrático que só faz plenamente sentido dentro do mundo pequeno
burguês das classes médias urbanas. Ou seja, até mesmo este último
bastião de significado ao qual a Escola ainda busca se apegar não ressoa
mais entre o principal público que ela atende atualmente – em especial a
escola pública – que são as classes populares, os estratos mais
humildes de nossa sociedade. No entanto, mesmo diante deste quadro, ela
procura se manter enquanto instituição à medida que se pauta na
legitimidade de fazer circular um saber institucionalizado e autorizado,
por mais que necessário e indispensável ao mundo pequeno burguês de
nossas classes médias.
Para
a maioria do atual público que frequenta os bancos escolares, em
especial de nossas escolas públicas, tal saber oficial, meritocrático
parece não constituir sentido prático ou teórico para às suas vidas,
para o seu cotidiano. Este público ainda frequenta os bancos escolares
muito mais por questões outras. Na maioria de nossas escolas públicas de
nosso país isto parece acontecer muito mais por conta que a Escola
passou a representar a sobrevivência, literalmente falando, para boa
parcela deste público, carente das mínimas condições básicas de
sobrevivência no seu dia-a-dia, sejam aqueles que frequentam diretamente
à escola, os alunos, seja aqueles que são seus responsáveis, os pais e
familiares, para quem a escola parece representar minimamente a
segurança alimentar se seus filhos, pelo menos no turno em que eles
estudam.
Ou
seja, boa parte deste público frequenta as escolas de nosso país,
primeiro porque o Bolsa Família – um dos principais programas
assistenciais e de distribuição de renda do Governo Federal – está, a
princípio, atrelado a frequência dos alunos à escola. Portanto, a ida
dos filhos à escola implica diretamente no recebimento deste benefício,
por mais que o controle de tal frequência não seja tão rígido quanto
deveria ser, mas ao menos garante a permanência de boa parte dos alunos
nas escolas, assim como a necessidade regular de suas matrículas ano a
ano, sob pena do benefício ser suspenso. Como boa parte das famílias
humildes do país tem no Bolsa Família um fundamental complemento de sua
renda mensal, senão toda ela em alguns casos, a ida para a escola de
filhos, netos, sobrinhos etc. torna-se quase que obrigatória, pois
implica diretamente na sobrevivência diária dessas famílias.
Além
disto, outros programas federais como o PETI – Programa de Erradicação
do Trabalho Infantil – foram atrelados e condicionados a permanência e
frequentação deste público de crianças e adolescentes à escola, em
especial a partir da segunda metade da década de 1990. Se formos fazer
um estudo comparativo do período anterior a estes projeto com o período
que sucede sua implantação, veremos como os índices de evasão e
desistência vêm caindo gradativamente, ano após ano. Mas, menos por
conta de um crescente entendimento da importância por e para estas
pessoas a quem tais programas se destinas, mas mais pelas obrigações que
eles implicam e a necessidade que geram. Pois, ao que me parece, antes
deles a maioria dos pais e responsáveis preferiam deixar seus filhos e
tutelados em casa, ajudando nas atividades laborativas de sua
sobrevivência cotidiana, do que manda-los para a escola.
Segundo,
a frequência e a frequentação dos mesmos se dão também por conta da
própria merenda oferecida nas escolas, que em grande medida se apresenta
como um complemento das parcas refeições diárias que estas pessoas têm
acesso. Mais uma vez, uma questão de sobrevivência, de pragmatismo.
Terceiro, atrelado a estes dois motivos anteriores, parece se encontrar o
fato de que a maioria dos pais e responsáveis enxergam na escola uma
possibilidade e um lugar onde seus filhos irão encontrar aquilo que eles
não conseguem fornecer e encontrar em casa: comida, alimentação, enfim,
uma relativa segurança em meio ao “caos” em que vivem. Quarto, o
interesse primeiro da maioria dos alunos em frequentar a escola parece
estar no fato de que neste espaço encontram um ambiente propício para o
divertimento, para a construção de pertencimentos que eles próprios
constituem as expensas das regras de convivência estabelecidas pela
instituição. Neste sentido, a escola é vista muito mais como um lugar
aonde se vai para encontrar os amigos, os colegas: para brincar, se
descontrair, se divertir sem ser interrompido pela necessidade do
trabalho cotidiano junto aos pais para o sustento da casa e da família. A
escola se torna um espaço privilegiado também para o aprendizado do
namoro, da azaração, da iniciação sexual, para por em prática aquilo que
lhe é explicitado naturalmente no seu dia-a-dia.
Quinto,
por a escola se pensar como família ou como uma extensão da família,
nuclear e burguesa, a maioria dos pais a toma não como escola, mas como a
própria família que deve não só contribuir para formar o cidadão, mas
também arcar com as demais premissas e prerrogativas do ideal de família
nuclear burguesa: cuidadora, mantenedora, educadora, acolhedora. E isto
se agrava sobremaneira no nosso tempo, onde o próprio conceito de
família nuclear e burguesa não diz mais quase nada sobre nossa
realidade, sobretudo para este público que frequenta as escolas
públicas. Público para o qual o conceito de família é totalmente ou são
totalmente outros, quase tão múltiplos quanto o número de alunos que se
dirigem a escola.
Famílias
constituídas, muitas vezes, apenas pela mãe ou pela avó ou a tia ou o
parente distante. Mães que não vivem mais com os pais biológicos de seus
filhos ou que se quer os conhecem, mas que agora tem um padrasto ou
vice-e-versa. Ou a mãe que desistiu de apanhar dos muitos homens que
passou por sua vida e agora vive uma relação homo afetiva com parceira
fixa ou relações homoeróticas com parceiras variadas. Ou o pai que mora
com a mulher “oficial” e a amante dentro da mesma casa, juntando também
os filhos de ambas. Famílias múltiplas, enfim. E diante delas a Escola
encontra-se sem rumo, sem prumo, nomeando-as com o único vocabulário que
lhe resta e sabe manejar com precisão: famílias desestruturadas,
anômalas, anormais, pois nenhuma se encaixa no seu modelo de família, no
seu ideal burguês de família nuclear.
Até
mesmo os professores, mais próximos desta realidade, se tornam
impotentes diante desta realidade, pois frutos de outra geração na qual a
autoridade do pai ainda se fazia sentir, mas já em transição para estes
novos tempos se sentem perdidos entre um tempo e outro, entre a
compreensão e a recusa, entre a condescendência e a punição, entre o
agir e o omitir-se. Paradoxo da profissão. Na falta do que fazer,
continuar fazendo o mesmo, ou seja, nada.
O
despreparo ou o vazio da Escola diante de nosso tempo é tão patente que
ela pouco sabe o que fazer diante o avanço das novas tecnologias da
informação, da comunicação e da eletrônica. Equipamentos cada vez mais
divulgados, difundidos e utilizados pelos alunos, mas que a Escola não
sabe não sabe como aproveitar todo o seu potencial para a produção e
circulação de conhecimento. E como não sabe o que fazer, proíbe. Proíbe
ou tentam proibir o uso de celulares, aparelhos eletrônicos e congêneres
no momento das aulas, desperdiçando assim o potencial e as
possibilidades abertas por estas tecnologias para a aprendizagem e a
produção do conhecimento.
A
escola não consegue compreender também aquilo que Michel Mafesoli chama
de processo de tribalização da sociedade, no qual os elementos de
identificação societais – modo de vestir, locais de frequentação, gosto
musical, artistas e esportes preferidos etc. – passam a definir as
relações grupais, constituindo tribos que se relacionam muito mais pela
sinergia dos gostos, dos gestos, atitudes e desejos semelhantes do que
por uma clara distinção social marcada por critérios econômicos ou
puramente classistas. Assim, o uso do boné, de determinadas vestimentas,
como shorts curtos, blusas coladas se tornam símbolos de identificação e
pertencimento a um grupo, a uma tribo. Assim como aquilo que se escuta,
que se faz e que se fala, ou seja, as próprias atitudes e gestos
definem esta pertença a um grupo – periguetes, roqueiros, rappers,
skatistas, pagodeiros, boizinhos (as), surfistas, swingueiros, emos,
punks, góticos e inúmeros outros que surgem a cada dia – ou a alguns
grupos ao mesmo tempo. Tribos estas que vem se multiplicando ao sabor
dos ventos e na velocidade dos acontecimentos que caracterizam nosso
tempo.
Diante
desta diversidade de tribos, nossas escolas ainda trabalham pautadas
pela homogeneização pelo uniforme, que tenta, em vão, substituir as
identidades móveis, com as quais não sabe lidar, dialogar, pela
identidade fixa do estudante fardado, numa tentativa de reduzir o
múltiplo e o diverso ao único, ao mesmo. Reduzindo a diferença à
identidade; identidade esta que não foi construída numa relação de
partilhamento simbólico, de sentimentos de pertença e identificação, mas
impostas de cima para baixo, como resultado de uma relação de dominação
e sua aculturação por aqueles que frequentam os bancos escolares.
Assim,
quando a escola diz que o aluno não pode usar boné, que não pode usar a
bermuda ou a blusa que usa cotidianamente é muito menos uma regra que
se impõe do que a quebra, muitas vezes dolorosa, com o processo de
construção das identidades sociais destes alunos. Agravando e tornando,
desta maneira, muito mais confuso e conflituoso o processo de construção
das identidades sociais destes sujeitos. Alimentando, assim, sua
rebeldia, sua revolta, sua “indisciplina” diante da Escola e promovendo
ainda mais a antipatia destes sujeitos por esta instituição que passa a
significar para eles muito mais um espaço de cerceamento, do tolhimento
de suas invenções enquanto sujeitos sociais, do que uma possibilitadora
deste processo.