sábado, 7 de janeiro de 2012

Sobre técnicas de pesquisa



Sobre técnicas de pesquisa*

Wagner Geminiano dos Santos**

Desde que Michel de Certeau publicou o célebre texto “A operação Historiográfica” que os historiadores têm dado por conta de, em seus textos e escritos, deixarem claros os passos de sua produção. É praticamente consensual entre os historiadores contemporâneos a prática de não se furtarem a explicitar para seus pares os procedimentos e as regras de produção que norteiam e encaminham as suas pesquisas, estando ai implicado também uma dimensão fundamental da produção historiográfica, as técnicas de pesquisa empregadas assim como as regras e procedimentos que as fazem funcionar.
Portanto, desde então não é dado mais ao historiador o papel de secto de uma corporação de ofício ao qual seria vedado o direito de expor os mecanismos da produção que exercia silenciosamente em nome de um corporativismo sectarista e restrito aos artífices da profissão que desempenhavam em segredo. Não lhe é mais permitido manter em silêncio ou amordaçado o barulho ensurdecedor das ferramentas de seu trabalho, muito menos o ranger das engrenagens de separação, seleção e manipulação dos materiais trabalhados e de trabalho. Neste sentido, uma vez definido o problema da pesquisa e a partir dele o corpus documental, cabe ao historiador explicitar as técnicas que usará para dar continuidade ao laborioso caminho até o seu termino e consumação na escrita.
É sobre esta dimensão da produção historiográfica, as técnicas, que iremos discorrer mais especificamente, tomando como base para tanto as técnicas que utilizaremos na pesquisa que estamos desenvolvendo para a produção da nossa dissertação de mestrado.
Estou recorrendo a algumas técnicas que, acredito, serão de grande valia no andamento da pesquisa, pois serão agenciadas justamente para dar uma maior velocidade aos trabalhos e produzir uma economia de esforços, ou seja, para produzir o maior número de efeitos com o mínimo de esforços. A primeira delas é a leitura e fichamento dos livros, textos e documentos escritos. O que consiste em, depois de uma primeira leitura, decompor o texto a partir das partes que julgamos fundamentais diante do problema que elegemos, para em seguida fazer a separação e seleção das possíveis passagens que irão ser usadas na escrita de nosso trabalho.
No entanto, ler, fichar, selecionar não assegura a eficácia total no uso do texto ou documento no nosso texto ou até mesmo que o fragmento selecionado possa vir a ser usado, pois dependendo do momento, da ocasião não olhamos da mesma forma para o mesmo livro, texto ou documento e, portanto, não o lemos com os mesmos olhos. Assim, a leitura, seleção e fichamento dos mesmos não eliminam a necessidade de voltarmos ao “original”, no máximo produz uma economia de tempo e esforço na procura de alguns aspectos relevantes para a pesquisa em andamento.
Outra técnica a que estou recorrendo é o processo de digitalização e catalogação digital dos documentos. Procedimento este que permite uma maior agilidade na manipulação e seleção dos documentos, uma vez que com o suporte de alguns programas de computador é possível operar uma seleção mais eficiente e detalhada dos textos e documentos tratados e, com isso, construir um banco de dados seqüenciado e serial ou até mesmo fazer um cruzamento mais rápido e eficiente dos textos e fontes bem como acelerar o processo de busca, localização e seleção das mesmas, não só por datas, mas também por palavras, nomes, termos, frases etc. Contudo, este processo não tem como desfecho a produção de uma evidência, de um documento que falaria por si mesmo, mas a produção de um deslocamento de natureza ou de estatuto do material trabalhado, uma vez que o mesmo foi transformado da condição de matéria bruta, pela intervenção de um processo técnico, em um dado de computador. E deste estágio a condição de documento é necessário à intervenção do historiador com seu olhar localizado e perspectivo.
Por fim, lanço mão de outra técnica, a colheita de depoimentos orais. Dentre todas, acredito que esta seja a mais instável e controvertida e também a mais enganadora das técnicas. Pois, diferentemente do que acontece com o fichamento ou com o processo de digitalização, neste tipo de abordagem o historiador não entra em contato direto com o seu material bruto de trabalho. Este ainda está por ser produzido e não é, tão somente, fruto de um encontro com uma matéria prima a ser trabalhada. A própria matéria prima ainda não existe. Ela também será fruto da produção do historiador.
E sua produção se dará mediante o uso de técnicas e procedimentos não tão seguros e eficazes quanto nos arranjos anteriores. As garantias são mínimas e os riscos muito maiores, uma vez que o historiador não pode se colocar simplesmente como um manipulador de dados, textos ou documentos escritos ou imagéticos, uma vez que estes ainda nem sequer existem em sua forma bruta. Nesta relação o historiador não pode se colocar numa condição na qual possa assumir a primazia do pólo ativo fazendo com que este tenha garantido o primado, mediante as técnicas que utiliza, sobre o outro pólo da relação. Como acontece, por exemplo, com os dados, documentos, textos escritos e imagéticos durante o processo de fichamento ou digitalização, submetidos que são a uma receptividade da ação, o que garantirá como produto desta relação à produção de documentos.
Desta forma, a relação que se estabelece, no colhimento de depoimentos orais mediante a técnica da entrevista é bastante instável e pode recair em dois lugares distintos, uma vez que os pólos desta relação parecem ser da mesma natureza, ou seja, ativo-ativo e os fluxos que os atravessam e os afetam no momento do colhimento do depoimento parecem definir mais os resultados do que o uso da técnica em si. Mas, por enquanto, vamos à descrição dos dois lugares, os mais comuns pelo menos, a que pode chegar o historiador mediante o uso desta técnica e de algumas de suas variantes.
O primeiro e, talvez, o mais perigoso deles é a produção de um documento induzido. Ou seja, na tentativa por parte do historiador de se colocar como pólo ativo nesta relação por demais instável e tentar manter o primado sobre o outro pólo, o entrevistado, pode levá-lo a cometer um equívoco grotesco, qual seja: produzir um documento direcionado, induzido a dar respostas satisfatórias ao problema suscitado na e com a pesquisa. Isto se torna mais comum nas entrevistas dirigidas, nas quais o historiador tenta manter o controle do depoimento mediante o uso de perguntas previamente elaboradas e selecionadas o que não permite muita margem de variação ao tema proposto pelo pesquisador. No final das contas corre-se o risco maior de se montar um quadro por demais restrito e induzido. Enfim, corre-se o risco de se produzir às respostas que se quer ouvir ao invés de se ter aquilo que o entrevistado quer falar, muito embora, isto também não traga muita segurança ao historiador, talvez, só mais perspectivas de novos caminhos.
O segundo lugar e que talvez seja o mais proveitoso e menos arriscado, é tomar o colhimento do depoimento como uma conversa entre desconhecidos, na qual o dois pólos são de mesma natureza, ativo-ativo, e que nos fluxos dos diálogos, em algum momento ou em todos eles, estes dois pólos entrarão em choque, cabendo aqui ao historiador assumir uma postura receptiva, uma vez que neste tipo de relação, ao que me parece, a função receptiva não estar ou não deve estar somente em um dos lados envolvidos, mas circulando com os agenciamentos de momento e interesses em jogo. Com isto retira-se, em grande parte, o perigo maior de uma indução unilateral na produção do documento, o que não que dizer, de forma alguma, que o historiador não intervenha de maneira decisiva na produção do documento, pelo contrário, uma vez que ele é o responsável direto pelo lance de dados inicial e por provocar o entrevistado a entrar nesta relação. Certamente, é neste ponto, e somente neste ponto, que se estabelece o primado da atividade do historiador sobre o entrevistado, a responsabilidade de dar o primeiro toque. No entanto, os lances seguintes não estão definidos.
No entanto, nos dois casos há um perigo maior a ser evitado, qual seja: o de tomar o produto de uma mediação técnica como a verdade sobre o que realmente aconteceu ou como o que realmente aconteceu, uma vez que se está em contato direto com aqueles que viveram o acontecido. Apesar disto, acreditamos que, no que diz respeito ao produto final desta mediação técnica, os depoimentos orais estão no mesmo plano dos demais documentos tomados e manipulados pelo historiador, ou seja, nenhum diz uma verdade melhor ou mais acabada que o outro, todos são em menor ou maior grau produtos de uma manipulação técnica. Todos são fabricados pelo historiador mediante a intervenção de técnicas de pesquisa as mais diversas.
Talvez, a única diferença, a mais explicita pelo menos, entre estes procedimentos, é a instabilidade que permeia a sua produção. Uma vez que esta se apresenta de forma mais explicita nas relações de produção dos depoimentos orais à medida que este tipo de procedimento é submetido a inúmeras variantes – humor, empatia, inibição, desenvoltura, constrangimento – decorrentes da natureza dos dois pólos em relação e de como se estabelece o primado da atividade entre eles dependendo do momento e das ocasiões em que se passa o diálogo.
No entanto, isto não é motivo de desespero, muito pelo contrário, cabe ao historiador lidar com os graus de instabilidade destes procedimentos tendo a consciência que por mais elaborada e sofisticada que seja a técnica, nela vai estar sempre implicada algumas destas variações e variantes ou todas elas a que nos remetemos anteriormente. A instabilidade é uma constante nos procedimentos técnicos e o historiador deve estar consciente disto assim como tem de estar consciente de que os documentos que acessa são produtos destas manipulações técnicas e não a porta de acesso direta a um passado dado. As técnicas de pesquisa não são a chave para abrir a porta deste suposto passado dado, mas são, antes de tudo, ferramentas e procedimentos que ajudarão o historiador a produzir um passado particular, um espaço-tempo histórico determinado. Enfim, são ferramentas fundamentais da operação historiográfica na qual consiste o ofício do historiador.


REFERENCIA BIBLIOGRÁFICA

ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz de. Violar Memórias e Gestar História. Revista Clio – Série Nordeste. N° 15. 1994.
CERTEAU, Michel de. “A operação historiográfica”. In: A escrita da História. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 2002.


* Vou recorrer neste texto ao expediente do ensaio, portanto o leitor não encontrará ao longo de sua escritura nenhuma referência em nota de rodapé ou citação no meio do texto.
** Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco.

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